Desabamentos de pontes interrompem vidas, destroem famílias, isolam comunidades, dificultam rotas e encarecem produtos No Brasil, 775 pontes estão em situação ruim ou crítica Desde 2017, orçamento para manutenção viária está abaixo do solicitado Era um domingo de verão.
A temperatura estava em 32,9ºC na divisa entre Maranhão e Tocantins.
Um grupo se refrescava nas águas do rio, na prainha do "pé da Ponte", que ganhou o apelido por ficar embaixo da ponte Juscelino Kubitschek.
Às 14h50, os banhistas ouviram um estrondo.
Em questão de segundos, uma estrutura de 140 metros de concreto que fazia parte da ponte se rompeu, levando quatro caminhões, duas caminhonetes, um carro de passeio, três motos e 18 pessoas a uma queda livre de 7,5 metros de altura dentro do rio.
Uma nuvem de poeira surgiu no ar e uma onda repentina se formou no Tocantins.
Os que estavam dentro da água tiveram de escapar de uma correnteza inesperada.
Barcos foram inundados.
Aquele instante, em 22 de dezembro de 2024, mudou a vida dos moradores de Estreito (MA) e de Aguiarnópolis (TO).
Também trouxe consequências para todos que usam o trecho da BR-226 entre os dois estados.
Das 18 pessoas que caíram junto com a ponte Juscelino Kubitschek, apenas uma sobreviveu.
Catorze foram declaradas mortas e três jamais foram encontradas – são classificadas como desaparecidas.
De maneira semelhante à estrutura da ponte que se rompeu, famílias se partiram e, ao contrário dela, jamais serão refeitas.
A 3.033,6 km quilômetros dali, no meio da floresta amazônica, cinco famílias tinham conhecido a mesma dor dois anos antes.
Sobre a maior bacia hidrográfica do mundo, choraram pelas vítimas que morreram no desabamento da ponte sobre o Rio Curuçá, na BR-319, no Amazonas.
Descuidado com a manutenção de sua malha viária, o Brasil é reincidente em vivenciar tragédias causadas por desabamentos.De acordo com a pesquisa Pontos Críticos das Rodovias, realizada pela Confederação Nacional de Transportes (CNT), além das pontes sobre o rios Tocantins e Curuçá, outras nove pontes em estradas despencaram e, sem conserto, são consideradas gargalos de logística no país.
Levantamento obtido pelo Metrópoles por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit) revela 775 pontes em estradas federais que estão condenadas.
São estruturas que, após vistorias técnicas realizadas pelo órgão, foram consideradas em estado ruim ou crítico.
A queda de uma ponte, ainda que não resulte em vítimas fatais, sempre gera um bloqueio no caminho, atrapalha a vida dos que usam a estrada, dificulta a logística e encarece os produtos.
Os desmoronamentos – causados, em sua maioria, por falta de manutenção – atrasam o país.
Como foi feita a reportagem
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O Metrópoles percorreu 9.057,8 quilômetros, de Norte a Sul do Brasil, para mostrar as consequências provocadas pelo descaso com a manutenção de pontes.
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Também obteve dados sobre a manutenção dessas estruturas com pedidos feitos ao Dnit por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
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A apuração durou seis meses e incluiu 16 dias de viagem, nos quais foram visitados 4 estados – Amazonas, Maranhão, Rio Grande do Sul e Tocantins.
Os locais onde a reportagem esteve passaram por desabamentos recentes.
– Entre os entrevistados, estão famílias que se viram sem direção ao perder um ente querido; trabalhadores que tiveram a atividade impactada após o colapso de uma ponte; caminhoneiros que não têm outra alternativa a não ser padecer em filas intermináveis e moradores que sofrem com os transtornos provocados pelos bloqueios.
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Apesar das particularidades de cada lugar, as rodovias interrompidas pelo desabamento de pontes produzem uma sensação comum de isolamento.
“Desinteirou” a família
A dona de casa Kaciane Rodrigues, 47 anos, tinha acabado de atravessar a ponte para retornar a Aguiarnópolis (TO) após o almoço de domingo com os pais, quando o celular tocou.
Era a mãe dela, que mora em Estreito (MA).
Kaciane não entendeu o porquê de ela ligar, se as duas haviam se encontrado pouco tempo antes, e ignorou a primeira chamada.
Em seguida, a mãe telefonou novamente e, depois, mais uma vez.
Quando Kaciane finalmente atendeu, após cinco tentativas da mãe, não sabia que a ponte entre as duas cidades tinha acabado de cair nem imaginava o quanto aquela notícia a impactaria.
A mãe telefonava preocupada, mas, a princípio, estava tudo bem com a dona de casa.
Então, Kaciane perguntou à mãe pela filha dela – Lorena, de 25 anos.
Foi quando soube que a jovem não havia chegado à casa dos avós.
Em um ciclo de preocupação, agora era Kaciane, na versão mãe, que passou a insistir com telefonemas para a filha.
A jovem, porém, jamais atendeu a ligação.Lorena estava em uma motocicleta que desabou junto com a ponte.
O corpo dela foi um dos primeiros a serem encontrados entre os destroços da estrutura.
A cena da filha morta na ponte despedaçada atormenta a memória de Kaciane ainda hoje.
“Para mim, ali, ‘desinteirou’ minha família.
Acordo chorando, durmo chorando.
Um pedaço de mim foi embora”Kaciane Rodrigues
A parte que se “desinteirou” levou consigo o ânimo de Kaciane.
Ela, que pedalava mais de 70 quilômetros por semana, nunca mais saiu para passear de bicicleta.
Do local da ponte, ainda não consegue nem se aproximar.
“Se preciso atravessar, olho para o outro lado.
Meu marido, não.
Ele ficou ‘morando’ lá.
Ia cedo e só voltava à noite, o dia inteiro parado olhando para a ponte”, conta.
A tragédia que levou Lorena aconteceu três dias antes do Natal.
“Desinteirada” como a ponte que caiu, Kaciane conta que não conseguiu celebrar mais nenhuma data comemorativa.
“Não tive Natal nem Ano-Novo.
No Dia das Mães, veio uma lembrança muito forte dela, de tristeza mesmo”, desabafa.
Lorena teve a vida interrompida aos 25 anos.
Ela começaria a estudar medicina em Imperatriz (MA), no primeiro semestre de 2025.
O curso era um sonho de toda a família.
A jovem deixou dois filhos, um de 9 e outro de 8 anos.
“Minha filha ajudava todo mundo, gostava de brincar e de conversar; era companheira.
É muita dor.”
Última travessia
Maria Seuma da Silva Guimarães, 63 anos, conta que a sobrinha Rosimarina da Silva Carvalho trabalhava naquele domingo.
Rosa era auxiliar de cozinha e saiu de casa em Aguiarnópolis por volta das 6 horas para atravessar a ponte e iniciar o expediente em um restaurante, em Estreito.
Após cumprir sua jornada na cozinha do restaurante, ela iria para a casa do pai, em Aguiarnópolis.
Pretendia fazer-lhe uma sopa.
Gostava de ajudar a família nos cuidados com o pai, que sofrera um AVC 10 anos antes.
A notícia sobre o rompimento da ponte chegou à família por volta das 15 horas.
O desespero foi imediato, Rosa ainda não estava ali.
“Era exatamente na hora que ela vinha para cá”, recorda Maria Seuma da Silva Guimarães, tia de Rosa.
“Estava em casa, arrumando umas coisas, quando minha sobrinha [irmã de Rosa] ligou para saber se ela tinha chegado aqui.”
Dali em diante, cada minuto sem notícias aumentava o sofrimento.
A família, então, decidiu ir para a beira da ponte.
Anoiteceu e nada de a auxiliar de cozinha aparecer.
Foram quatro dias de angústia até que o corpo de Rosa foi encontrado por um pescador a 16 quilômetros de distância do local da tragédia.
A correnteza tinha levado a mulher para longe.
"A gente não teve nem direito de fazer velório, pois a decomposição estava avançada.
Do jeito que aconteceu, nem velar o corpo dela a gente pôde.”Maria Seuma da Silva Guimarães
Não é apenas a dor do luto que abala a família, mas a revolta pelo motivo da morte.
“Perder uma pessoa da família que não estava bem, que estava em casa doente, você supera.
Perder uma pessoa nova, que estava trabalhando para o sustento dela e dos filhos, é outra coisa.
A gente fica sem chão.”
Assim como na casa de Kaciane, não existiu Natal para a família da Rosa.
Na verdade, não existiu Natal em nenhuma das residências dos 4.497 habitantes de Aguiarnópolis nem nas dos 33 mil moradores de Estreito.
O feriado que simboliza o nascimento de Cristo foi eclipsado pelas mortes na estrada.
Duas cidades inteiras choravam.
Dor dilacerante
Rosângela Nascimento, 62 anos (60 anos na época), estava com o marido, João Nascimento Fernandes, 58, quando a ponte sobre o Rio Curuçá, no Amazonas, colapsou.
Era a manhã de 28 de setembro de 2022, e os dois voltavam de um fim de semana em Autazes, município a cerca de 30 quilômetros de Manaus.
O casal viu uma fila de carros parados para atravessar a ponte no km 23, na altura do município de Careiro da Várzea.
A rota havia sido interditada parcialmente dois dias antes por causa de rachaduras e buracos.
A fila era causada por protestos que pediam melhorias na via.
João desceu do carro para verificar o que estava acontecendo e disse à Rosângela para aguardar no veículo.
Não tinham passado nem 10 minutos, a mulher ouviu um estrondo e se assustou.
A servidora pública correu para a ponte e viu os destroços na água barrenta, em meio a carros e pessoas.
Não achou João.
“Eu gritava e chorava chamando por ele”Rosângela Nascimento
O susto foi tão grande que Rosângela infartou, relata a filha Gilcilene Araújo, 37 anos.
“A gente descobriu depois.
Os exames mostraram que ela tinha infartado, mas a adrenalina foi tanta que ela nem desmaiou.” Sem acesso à internet, Rosângela contou com ajuda de um conhecido para falar com a família, que estava em Manaus.
Conseguiu acionar Diane e Kelly – suas filhas, que chegaram ao local do desabamento quase duas horas depois devido à dificuldade de acesso.
“Era uma cena de guerra.
Nós descemos um barranco enorme de barro e de mata; depois atravessamos o rio em uma canoinha, depois subimos outro barranco.
A primeira coisa que vi foi o carro do meu pai estacionado.”
Ao encontrar as filhas, Rosângela sentiu um pouco de esperança.
“A gente via nos olhos dela que ela aguardava alguma notícia boa sobre o papai”, lembra Kelly.
As duas, no entanto, não tinham informações de João.
No dia seguinte, Gilcilene, a filha mais velha do casal, e Beatriz, neta deles, acompanharam as buscas.
A água escura e os destroços atrapalhavam a visibilidade no rio.
A família – agora formada apenas por mulheres – repetiria muitas vezes a agonia de esperar por notícias de João à beira do Curuçá.
Onze dias após a tragédia, em 8 de outubro de 2022, outra ponte na mesma estrada também sucumbiu.
A estrutura sobre o Rio Autaz-Mirim estava a apenas 1,5 quilômetro de distância da primeira ponte.
Dessa vez, não houve mortos nem feridos, pois o trecho estava previamente interditado.
O governo do Amazonas montou um comitê de resposta rápida para dar explicações e tomar providências sobre o desabamento das pontes, mas as reuniões se restringiam a discutir questões de locomoção na área.
Nem parecia que o episódio tinha mortos e desaparecidos.
A BR-319 é uma das poucas estradas que alcançam o Amazonas.
As buscas pelo corpo de João foram encerradas 14 dias após o desabamento da primeira ponte.
A viúva, as filhas e as netas sentiram que encontrar o patriarca não era prioridade para as autoridades envolvidas.
“Não tocavam no assunto morte em momento algum.
Eu tinha que tirar uma força de dentro de mim para, no meio daquelas autoridades, perguntar como estavam as buscas para achar meu pai.
Só aí que quem mediava pedia para os bombeiros informarem um parecer”, desabafa Diane.
A família, que tinha parado a vida desde o desaparecimento de João, resignou-se a retomar os compromissos aos poucos.
Em 17 de fevereiro de 2023, uma sexta-feira de pré-Carnaval, o corpo de João finalmente foi encontrado.
Já tinham se passado cinco meses desde o acidente.
A empresa contratada para refazer a ponte removeu um caminhão do fundo do rio e, debaixo do veículo pesado, estavam os ossos dele.
Àquela altura, Rosângela estava visitando a mãe, no Pará, com a filha Kelly.
Em vez de receber a notícia pelas autoridades competentes, viu o corpo do marido em redes sociais.
“Estava na casa da minha mãe, mexendo no Facebook, e apareceu a publicação”, lembra.
Kelly estava perto e mexeu no celular imediatamente para evitar que a mãe visse o corpo do pai.
“Minha filha pegou o celular, o post sumiu, mas não adiantou.
Eu conheci.
Conheci a cabeça dele.
Reconheci.”Rosângela Nascimento
“Isso dói.
Comecei a chorar e a passar mal na frente da minha mãe, uma senhora de 95 anos.
Acho que, nesse momento, a gente deve ter respeito com as pessoas que morrem e as famílias delas”, completa Rosângela, referindo-se aos que vazaram a foto e aos que a publicaram em redes sociais.
Para a família Nascimento, a saudade de João é diária e vem acompanhada do sentimento de revolta.Três anos depois da queda da ponte, o inquérito apontando os responsáveis não está concluído.
O Metrópoles procurou a Polícia Civil do Amazonas e o Governo do estado para saber os motivos da demora.
Nenhum dos órgãos respondeu.
O Dnit informou, em nota, que o colapso ocorreu por causas geológicas.
“Foi uma tragédia anunciada, uma tragédia que poderia ter sido evitada.
O meu pai não era para ter morrido.
Ele era um cara saudável, um homem que estava bem, feliz, que trabalhava.”
João era marido de Rosângela há 35 anos, pai de três mulheres, avô de duas meninas, servidor público e cantor de bolero.
15% das pontes federais estão em risco O Metrópoles solicitou ao Dnit, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o levantamento da situação das estruturas de cada uma das pontes em rodovias federais, com a localização por coordenadas, a data da última vistoria técnica, a extensão e o status atual (se está em manutenção, com reforma prevista etc.).
O Departamento respondeu com uma planilha contendo 6.117 pontes.
No documento, 1.099 pontes estavam duplicadas, ou seja, o órgão acompanha o estado de conservação de 5.018 estruturas.
Entre estas, somente quatro são consideradas ótimas.
No outro extremo, estão as classificadas como ruins ou críticas, que correspondem a 15,4% das pontes brasileiras.
De acordo com o Dnit, uma ponte é classificada em estado ruim ou crítico quando “há danos gerando significativa insuficiência estrutural na estrutura, porém não há ainda, aparentemente, um risco tangível de colapso.” Os fatos, infelizmente, contrariam as palavras.
Antes de desmoronar, a ponte Juscelino Kubitschek estava classificada na categoria “ruim”, mas, ainda assim, não foi interditada.775 pontes estão em situação ruim ou crítica.
A ponte Juscelino Kubitschek, entre o Maranhão e Tocantins, estava na classificação de ruim quando caiu.
1.537 pontes estão em estado regular.
A ponte que causou a morte de João Nascimento, no Amazonas, era classificada como “regular”.
1.950 pontes estão em estado considerado bom.
A segunda ponte que caiu no Amazonas, do Rio Autaz-Mirim, era classificada como boa.
Apenas 4 pontes estão em situação considerada excelente.
752 pontes em rodovias estão sem avaliação.
Ao todo, são 41,6 km de extensão em pontes comprometidas.
Veja no mapa onde estão as pontes consideradas em situação ruim ou crítica Navegue pelo mapa para ver todas as pontes do Brasil com risco, de acordo com o Dnit Fonte: Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit) 40% menos repasses do que o necessário Nos últimos sete anos, entre 2017 e 2023, o governo federal investiu, em média, 40% a menos na manutenção da malha viária nacional do que os valores solicitados pelos técnicos do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).
Os dados de 2024 ainda não estão disponíveis.
As informações são do Plano Nacional de Manutenção de Rodovias (PNMR), um documento anual feito por técnicos do Dnit para embasar a previsão de gastos no ano seguinte.
No governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), de 2019 a 2022, o valor repassado ao Dnit foi 53% menor do que o solicitado.
No primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o montante pago foi 18% menor do que o solicitado.
Transtornos na pista
Não são só as estradas federais que têm problemas de manutenção.
Rodovias administradas por concessionárias também apresentam pontos de bloqueio causados por pontes desmoronadas.
É o caso da rodovia estadual RS-287, no Rio Grande do Sul, que é administrada pela concessionária Sacyr.
A estrada é um importante corredor logístico do estado e passa por Santa Maria, cidade polo de serviços para outros 14 municípios próximos.
A ponte da RS-287 desmoronou em 30 de abril de 2024 durante as enchentes que devastaram o RS, e, como o contrato de concessão não previa desastres naturais, a empresa e o governo ainda estão brigando para saber de quem é a responsabilidade de reparar o trecho.
Enquanto o impasse persiste, os motoristas que passam por ali pagam R$ 200 de pedágio por mês para atravessar uma via que só é transitável porque o Exército instalou uma “ponte tática”, estrutura provisória criada para garantir logística em zonas de guerra.
A “ponte tática” só aguenta o peso de um veículo pesado por vez, o que atrasa o fluxo de carretas, caminhões e ônibus.
Em momentos de trânsito intenso, a fila para atravessar o Rio Arroio Grande obriga motoristas e passageiros a ficarem mais de uma hora esperando.
📊 Informação Complementar
Moradora do município Restinga Seca há 41 anos, Laiz Silveira Toniazzo é obrigada a enfrentar filas na rodovia desde setembro do ano passado, quando iniciou um tratamento contra o câncer no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM).
“Ficava no hospital três dias fazendo quimio.
Na hora de voltar para casa, era aquela expectativa de chegar e descansar, mas ali na rodovia esperava mais de uma hora com o carro parado por causa do trânsito.”Laiz Silveira Quando o tratamento passou a incluir sessões de radioterapia, as dificuldades de locomoção pioraram.
Laiz tinha de ir ao hospital de segunda a sexta-feira, saindo de casa às 5h, sem saber a hora de voltar.
Agora, com consultas a cada dois meses, a maior preocupação dela é pegar a estrada com antecedência para não perder o horário dos exames.
O mecânico Paulo Afonso também se incomoda com a falta de previsibilidade para chegar a sua casa.
Em 2022, ele começou a fazer hemodiálise três vezes por semana no HUSM.
Depois da queda da ponte, o tempo de percurso até o hospital dobrou.
“Era coisa de 45 minutos para ir a Santa Maria.
Hoje demora duas horas e, às vezes, até mais, nem dá para prever.
Tá mais fácil ir para Porto Alegre do que para Santa Maria”, ironiza.
A distância entre Restinga Seca, município que o mecânico vive, e Porto Alegre corresponde a 257 km.
De lá até Santa Maria são apenas 58 km.
A tragédia climática do ano passado segue afetando os gaúchos.
As enchentes danificaram 13,7 mil quilômetros de estradas no Rio Grande do Sul, entre rodovias federais e estaduais.
Pontes quebradas, asfalto destruído e vias que não existem mais atrapalham o tráfego entre as cidades.
Moradora de Santuário, outro município que orbita ao redor de Santa Maria, a estudante de ensino médio Brenda Grigoletto, de 16 anos, se queixa do tempo que demora para chegar à escola.
“O normal seria pegar o ônibus que sai entre 6h55 e 7 horas, mas, desde que a ponte quebrou, o ônibus começou a passar às 7h40.
A minha aula começa às 7h45, estou sempre perdendo o primeiro horário.”Brenda Grigoletto
Ela está no segundo ano do ensino médio e ainda não definiu se pretende cursar medicina ou direito.
No ano passado, para fazer a prova da primeira etapa do Processo Seletivo Seriado (PSS), saiu de casa quatro horas antes da abertura dos portões.
Estava com medo de engarrafamentos na estrada.
Ponte sobre Rio Tocantins já foi exemplo
A Ponte Juscelino Kubistchek de Oliveira, de Estreito (MA) a Aguiarnópolis (TO), já foi exemplo de engenharia no Brasil.
Inaugurada em 1960 como parte do corredor Belém-Brasília, a estrutura tinha o maior vão livre do mundo, com 140 metros de distância entre os pontos de apoio.
O recorde anterior pertencia à Alemanha.
No total, a ponte tinha 532,7 metros de comprimento e era dividida em 17 vãos e em 16 apoios, com 12 metros de largura e 7,5 de altura.
Essa estrutura, que já foi sinônimo de grandeza, despencou após anos apresentando problemas estruturais.
Em janeiro de 2020, quase cinco anos antes do desmoronamento, a ponte já havia sido condenada em um relatório interno do Dnit.
De acordo com o documento obtido pelo Metrópoles, a camada que recobre os pilares estava fissurada e descolada, expondo as armaduras à corrosão.
Em alguns pontos, a cobertura da armadura era de 10 e 4 milímetros, inferior ao mínimo especificado pelas normas de segurança: o recomendado são 25 mm nas lajes e 30 mm nos pilares.
Além disso, 64% dos desalinhamentos observados por técnicos do Dnit estavam maiores do que a norma especificada e 23% dos desvios angulares estavam acima da tolerância.
Em agosto de 2024, o governo federal lançou licitação para contratar uma empresa com o objetivo de reformar a ponte por R$ 13 milhões.
O valor foi considerado abaixo do mercado, e nenhuma empresa se interessou pela concorrência.
O dinheiro que não foi oferecido para recuperar a estrutura precisou aparecer depois, de forma emergencial.
A reconstrução está orçada em R$ 171 milhões.
Em construção
Segundo o Dnit, a nova ponte sobre o Rio Tocantins terá 630 metros de extensão, 19 metros de largura e um vão livre de 154 metros.
Prevista para ser entregue no fim deste ano, a nova estrutura está com todas as 24 fundações e os 26 pilares prontos.
Sobre as causas da queda da ponte, o órgão afirmou que foi instaurada Investigação Preliminar Sumária para avaliação das informações levantadas pela comissão, visando subsidiar a admissibilidade correcional.
Os dados são sigilosos para preservar a imparcialidade das apurações.
“Paralelamente, o Dnit segue aguardando o relatório do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) do Estado de São Paulo, órgão independente, que irá apontar a conclusão final quanto às causas do colapso da ponte.
A contratação do trabalho que está sendo realizado pelo Instituto tem término previsto para abril de 2026”, completou.
A Polícia Federal concluiu, em julho, o laudo com as causas da queda da ponte.
A falta de manutenção e a sobrecarga de veículo teriam sido os fatores que levaram ao desabamento.
Pescadores sem renda
Quando a ponte Juscelino Kubitschek despencou, caminhões que transportavam ácidos e pesticidas foram parar no fundo do Rio Tocantins.
As carcaças e os agrotóxicos ainda estão dentro do rio.
De acordo com apuração do Ministério Público Federal (MPF), três caminhões com substâncias químicas, sendo dois deles carregados com 76 toneladas de ácido sulfúrico e um com 22 mil litros de defensivos agrícolas, estão no fundo do rio.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aponta que, até o momento, as substâncias químicas não provocaram alterações na qualidade da água nem prejudicaram a fauna aquática.
A avaliação do Ibama, contudo, não foi suficiente para convencer os moradores da região de que o rio não está poluído e de que os peixes podem ser consumidos.A renda dos pescadores caiu cerca de 70% desde que a ponte desmoronou.
Quem dependia da pesca para sobreviver tem visto cada vez mais produtos faltarem em casa.
“O mais difícil é a questão da alimentação”, diz Zilda Rocha, de 41 anos, pescadora desde que se entende por gente.
Nascida e criada nas margens do Rio Tocantins, ela conta que nunca passou por uma situação de dificuldade financeira como a atual.
“Depois que a ponte caiu, ficou muito complicado.
Ninguém quer comprar peixe; e quando compra, sai muito barato.
O quilo do peixe está R$ 5.
Você pesca 10 quilos e não dá para nada.
Dá mal para comprar arroz e uma misturinha.”Zilda Rocha
O pescador Marleudo Alves Silva também desabafa.
“Lá em casa não chegou a faltar comida, mas passou bem perto.
Hoje a compra no mercado está quase metade do que era antes.
A alimentação caiu muito, o leite das crianças diminuiu.”
Cotidiano desgastante
Do lado maranhense do Rio Tocantins, o antigo porto dos pescadores é usado para embarque e desembarque de pessoas.
Para chegar ali, é necessário enfrentar uma subida em um chão de brita escorregadio.
Em uma manhã ensolarada de maio, é com dificuldade que a aposentada Adelaide Silva, de 74 anos, sobe o barranco acompanhada da filha, a empregada doméstica Marly de Sousa, de 54 anos.
“A gente mora em Aguiarnópolis, mas tudo que vai fazer é em Estreito.
Hoje viemos para um procedimento bancário dela (mãe)”, conta Marly.
O professor Murilo Silva Galvão mora em Estreito, mas ministra aulas na rede municipal de Aguiarnópolis.
Após a queda da ponte, o cotidiano ficou mais puxado.
“Antes de a ponte cair, era mais cômodo, mais fácil.
Não tinha esse desgaste todo para nós e para os alunos.
É ruim para eles, especialmente para os de tempo integral.”, afirma o professor.
Até quem fatura com os barcos preferia a situação anterior.
O presidente da associação dos barqueiros, José da Conceição, trabalha todos os dias, de segunda a domingo, atravessando as pessoas de uma margem para outra do rio.
Segundo ele, os 10 barqueiros levam em média 2 mil pessoas por dia, das 5h às 19 horas.
O trabalho é certo, e o pagamento também, ainda assim José diz que a situação anterior – com a ponte – era melhor.
“Trabalhava em temporadas, mais em julho mesmo.
Levava as pessoas para a Ilha Cabral e nos outros dias pescava.
Agora o trabalho não para, é cansativo”, reclama.
Filas quilométricas
Usar balsas para atravessar o Tocantins também demanda paciência.
As filas de caminhões são quilométricas e podem exigir até 12 horas de espera.
Pela ponte, o trajeto era feito em menos de cinco minutos.
Além disso, a fila de espera provoca uma situação inusitada na cidade.
Carretas e caminhões que antes seguiam por uma rodovia federal entram agora em bairros residenciais para chegar ao ponto de embarque da balsa.
Os moradores, que viviam em um local calmo e pacato, abrem a porta de casa e se deparam com veículos pesados estacionados na rua.Um morador que não quis se identificar disse à reportagem que está com um neto de 2 anos em casa e que o menino se assusta ao ponto de chorar com o barulho dos caminhões.
Outra moradora reclamou que a rua tomada por veículos impede as crianças de brincar.
Moradora do local há 30 anos, a aposentada Ednar Dias, 67 anos, lida com a fila de caminhões na porta de casa todos os dias.
“Aqui era bem mais tranquilo.
Esse movimento todo incomoda, mas a gente entende o lado deles.
Eles não são os culpados, nem a gente”, afirma.
“A queda da ponte dificultou a vida de todo mundo, tanto do morador que está aí quanto do caminhoneiro que está passando”, relata o motorista Dorismar Ferreira, durante a travessia de Estreito para Aguiarnópolis.
Na carreta, ele transportava motocicletas fabricadas na zona franca de Manaus (AM), que seriam entregues em Florianópolis (SC).
“Você chega à noite, tem 3 km de fila de caminhão e só três balsas fazendo o percurso.
Então é muito sofrido.
Só compensa passar por aqui porque o outro caminho aumenta em 240 km a distância e é chão ruim”Dorismar Ferreira
cargas perecíveis
Quando a carga é perecível, o desafio logístico aumenta.
Na BR-319, no Amazonas, onde as duas pontes próximas ao município de Careiro da Várzea estão quebradas, soluções complexas já foram adotadas para evitar que cargas inteiras de alimentos estraguem.
Durante a seca de 2024, que dificultou o tráfego de balsas nos locais onde as pontes estão quebradas, as filas para atravessar os trechos interrompidos eram enormes.
A solução foi enviar caminhões de gasolina para os pontos bloqueados com o objetivo de manter os refrigeradores das carretas funcionando.
“Era tanto caminhão na BR-319, que parecia trem.
Chegou ao ponto de os Thermo Kings (carretas refrigeradas) serem abastecidos no local para não perderem a temperatura necessária para conservar a carga”, relata o presidente da Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL) de Manaus, Ralph Assayag.
Um carregamento que segue por balsa de Porto Velho (RO) a Manaus leva entre 10 e 15 dias.
Pela rodovia, o tempo é reduzido em até quatro dias.
“A cebola, a batata, o produto chegam em melhor qualidade, sem avarias e com uma duração maior.
A mesma coisa o iogurte, o pão de forma.
Vai chegar com mais prazo de validade”, explica.
No entanto, depois que as pontes caíram, ficou mais difícil ter uma previsibilidade sobre o tempo da jornada.
“O cara lá em São Paulo procura a melhor rota, analisa o melhor preço.
Se não tem garantias de que a carga vai chegar, ele manda por outro modal, mesmo que o custo seja maior”, explica Assayag.
Para o presidente da Associação de Amigos da BR-319, André Marsilio, o trecho de Careiro da Várzea é o pior da estrada.
“Essa parte da rodovia é uma das mais críticas da BR-319.
E quem diria?
Porque temos 400 km que não são nem pavimentados.
Essas pontes caídas são uma novela que já dura dois anos.”
O Dnit informou que a ponte sobre o Rio Curuçá está com mais de 75% dos serviços realizados, e a previsão de conclusão é outubro deste ano.
A ponte sobre o Autaz-Mirim, por sua vez, está na fase da cravação de estacas, com previsão de conclusão para dezembro de 2025.
Preços mais caros
As dificuldades logísticas provocadas por pontes quebradas podem aumentar o preço dos produtos em até um terço, segundo a Confederação Nacional dos Transportes (CNT).
“O custo normal do transporte em uma rodovia em boas condições corresponde a cerca de 32% sobre o valor do produto”, explica a diretora executiva interina da CNT, Fernanda Rezende.
“Quando a estrada está ruim ou obriga os motoristas a fazerem paradas longas, há impacto no preço final”, esclarece.
O tempo parado à espera de balsas não é considerado descanso para o motorista, pois ele precisa ficar atento ao fluxo da fila.
Além disso, as retenções de veículos podem comprometer a carga ou atrapalhar o prazo de entrega.
Outro problema é a falta de caminhos alternativos.
O ponto bloqueado obriga, geralmente, o motorista a esperar, pois não há outra estrada que lhe atenda.
O Brasil tem 1,7 milhão de quilômetros de rodovias, mas só 12% delas estão pavimentadas.
A diretora executiva interina da CNT, Fernanda Rezende, defende parcerias público-privada para ampliar a malha rodoviária brasileira.
“O setor da infraestrutura costuma ser um dos primeiros a serem afetados quando há cortes no orçamento, por isso as obras de ampliação e manutenção são adiadas”, comenta.
População esquecida
No fim de maio, quando a reportagem esteve no Amazonas, a equipe presenciou um dos momentos em que a BR-319 travou por causa das duas pontes que desabaram.
Tanto no Rio Curuçá quanto no Autaz-mirim, a travessia de veículos e pessoas vem sendo feita em balsas e caminhos improvisados por pedras nas partes mais baixas do rio.
Em maio, as enchentes carregaram as pedras, e o caminho entre as duas margens se tornou inviável.
A estrada – único acesso por terra do Amazonas para o resto do país – ficou fechada até que o trecho de pedras fosse refeito.
Imediatamente, começaram a se formar filas de veículos e pessoas na rodovia.
A produtora rural Edileuza Menezes, 59 anos, chegou ao local às 6 horas, e a rodovia estava interditada desde as 17 horas do dia anterior.
Em Manaus, de onde ela veio, ninguém avisou que a estrada estava fechada.
Surpreendida pelo imprevisto, queixou-se do descaso das autoridades públicas com a população.
“Nós ficamos aqui na fila sem satisfação nenhuma.
A BR-319 é esquecida, o Amazonas é esquecido.
Estou só com água.
Aqui não tem o que vender, o que comprar”, reclamou.
Naquela ocasião, a BR-319 ficou interditada por pelo menos 50 horas.
Dez horas depois de o trecho ser desbloqueado, foi o acesso sobre o Rio Autaz-Mirim que se rompeu.
O Brasil que desmorona é um país que aborrece, maltrata, atrasa e isola seus cidadãos.
É um país que, mais de uma vez, já chegou a matá-los.
Fonte: metropoles
13/08/2025 07:06