Yuval Noah Harari, de 49 anos, entra no Bar Rabo di Galo durante uma manhã chuvosa em São Paulo.
Ele não está disposto a tomar nenhum coquetel, mas sim a conceder uma entrevista ao Estadão antes de uma série de conferências agendadas no Brasil.
O historiador israelense, de corpo esguio, é tímido, sereno e sorri de forma comedida.
Acompanhado de seu marido, ele olha para os vários instrumentos dispostos no recluso pub aos fundos do Rosewood Hotel, na Bela Vista.
“Você toca alguma coisa?”, pergunta o repórter.
“Não, eu só escrevo!”, responde o homem responsável por alguns dos best-sellers mais importantes da atualidade.
Dono de um raro intelecto aliado à capacidade de se comunicar de maneira acessível com os leitores, Harari se destacou com Sapiens, originalmente publicado em 2011, no qual investigou o passado e a evolução da humanidade, tendo como argumento central a narrativa de que o Homo sapiens dominou o mundo por ser o único animal capaz de cooperar de forma flexível em largo número, disseminar “fofocas” (no sentido de falar a respeito do outro, uma habilidade evolutiva crucial) e acreditar em coisas que, segundo ele, são produtos puramente imaginativos, tais como religiões e dinheiro.
Depois do sucesso estrondoso de Sapiens, traduzido para 65 idiomas e até adaptado em HQ, ele projetou o futuro em Homo Deus (2015), refletiu sobre as urgências do presente em 21 Lições para o Século 21 (2018) e destacou o poder das redes de informações, da Idade da Pedra até a inteligência artificial, em Nexus (2024), seu livro mais recente.
Além disso, lançou dois volumes da série Implacáveis, destinada ao público juvenil.
O autor revelou ao Estadão que seu próximo trabalho deve ser publicado em cerca de dois anos, tendo como tema os “mecanismos profundos da história”.
Ao traduzir conceitos complexos da filosofia, da política e da ciência em uma linguagem clara, Harari atraiu a atenção de empresários e executivos em todo o mundo.
Ele é frequentemente chamado de ‘Guru do Vale do Silício’ porque suas obras e ideias tiveram grande influência entre magnatas do setor de tecnologia, incluindo Mark Zuckerberg e Bill Gates.
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E na esteira de toda a aclamação, há quem o conteste.
Por mais que alerte acerca dos perigos da era digital e discuta questões éticas relacionadas ao uso da IA – chamada por ele de “inteligência alienígena” que pode “escravizar a humanidade” e/ou “sustentar regimes totalitários” – Harari também é alvo de críticas.
No ano passado, por exemplo, o neurocientista Miguel Nicolelis, uma das mentes mais geniais do Brasil, o chamou de “porta-voz da aristocracia”.
Nesta conversa, ao responder a esse comentário, o escritor afirmou que muitos líderes do Silício estão fazendo o oposto do que ele recomenda e criticou a cultura do cancelamento por tentar associá-lo aos capitalistas mais influentes do planeta.
“Só porque estou no palco com alguém não significa que eu apoie seus pontos de vista”, ponderou.
Yuval Harari alerta para perigos da IA em palestra em SP: ‘Vai fugir do nosso controle’ Historiador israelense, autor de ‘Sapiens’ e ‘Nexus, participou de evento de apresentação do SP2B – São Paulo Beyond Business.
Crédito: Julia Queiroz/Estadão Sobre o conflito em Gaza, ainda sem atingir plena paz, Harari elogiou a postura de Donald Trump e disse que o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu está prolongando a guerra intencionalmente.
Todavia, ele condenou o presidente dos EUA por outros motivos, como o negacionismo de problemas climáticos e o apelo ao poder imperial – temas que devem condicionar discussões na COP-30.
Dias antes de viajar ao Rio de Janeiro para um evento do Fronteiras do Pensamento (mediado por Luciano Huck), Harari ficou “bastante chocado” com a operação contra o narcotráfico que matou ao menos 120 pessoas na capital fluminense, mas alertou que “não devemos cair num clima sombrio de que tudo está errado”.
Nesta quinta-feira, 6 de novembro, o intelectual participa da 25ª edição do HSM+, em São Paulo.
Trata-se um dos mais relevantes eventos de gestão e liderança corporativa da América Latina.
Ele fará uma palestra com mediação de Erick Bretas, CEO do Estadão.
Leia abaixo a entrevista completa.
Você é considerado um dos maiores pensadores do século 21.
As pessoas prestam muita atenção no que você escreve ou diz.
Como o seu ego lida com isso?
Uma pessoa geralmente não é uma boa juíza de sua própria vaidade.
Espero que não esteja subindo à minha cabeça porque, caso contrário, isso te deixa louco.
É uma grande responsabilidade, mas esse é o meu trabalho como um intelectual público.
É quase impossível saber qual o impacto real.
Em outras indústrias, é mais fácil de medir se você está alcançando as pessoas ou não.
Com ideias, milhões de pessoas podem ler algo e ainda assim isso não mudaria o comportamento delas em nada e, por outro lado, algo pode realmente ter um impacto profundo em você sem que você perceba.
Certamente, posso dizer que muitos dos meus avisos sobre a IA foram completamente ignorados.
Até pelas pessoas que leem meus livros ou estão nesta discussão comigo.
Eu não queria te perguntar nada sobre IA porque suponho que você esteja um pouco cansado de falar sobre isso…
Sim, dez anos atrás quase ninguém estava falando sobre IA.
Hoje, você não consegue abrir um jornal sem ler algo sobre IA.
Então, eu decidi fazer algo diferente.
Fui ao ChatGPT e perguntei como ele reage a todas as suas declarações sobre o poder da IA .
A resposta foi: ‘Como uma IA, eu não tenho sentimentos, então não sinto nada ao ouvir Yuval Harari ou qualquer outra pessoa.
Mas posso analisar e refletir sobre as ideias dele.
Do meu ponto de vista como IA, as reflexões dele são lúcidas e úteis.
Elas ajudam a guiar o desenvolvimento ético da tecnologia, mas ele pode exagerar a tendência ao catastrofismo e subestimar o papel da regulamentação e do uso ético’.
Essa é uma afirmação justa?
Só o tempo dirá.
Eu não sei.
Certamente, há muito pouca regulação no momento.
Quando falo sobre o futuro da IA, eu geralmente não apresento cenários catastróficos do tipo: ‘A IA está lançando uma guerra nuclear ou criando um vírus que mata a humanidade’.
Eu me interesso mais por realmente pensar abertamente sobre a implicação de ter milhões de agentes de IA que são capazes de tomar decisões, inventar novas ideias, pensar em sistemas.
Eu estou curioso para ver o que acontece com a religião quando a IA entender a Bíblia melhor do que qualquer padre.
E o que acontece com as relações humanas quando a IA escrever cartas de amor melhor do que seu namorado(a).
Então, isso não é um tipo de cenário apocalíptico.
Eu não acho que teremos robôs assassinos nas ruas atirando nas pessoas amanhã de manhã, mas é o tipo de transformação que não vimos nada parecido na história.
Preciso te perguntar sobre o Brasil.
É claro que somos uma nação com riquezas incomparáveis, mas há muita miséria, corrupção, crime organizado e falta de perspectiva por parte do povo brasileiro.
Muitos brasileiros perderam a esperança no Brasil.
Do seu ponto de vista como historiador, o que deu errado no Brasil?
Primeiramente, eu não sei se algo deu errado no Brasil e não sou um especialista em história brasileira.
Ele ainda é um dos grandes, não apenas fisicamente, mas também em termos econômicos, em termos culturais.
O Brasil tem um enorme impacto no mundo.
Eu não diria que é uma falha o fato de não ter realizado todas as esperanças e ambições de seu povo.
Nenhum país na Terra realizou todas as esperanças e ambições de seu povo.
Você ficou chocado com as notícias sobre a operação contra o narcotráfico no Rio?
É bastante chocante [ver as notícias], mesmo eu vindo do Oriente Médio, onde nos últimos anos nos acostumamos com notícias muito mais chocantes sobre taxas muito mais altas de violência.
Com todos os seus problemas internos, o Brasil tem um histórico de paz, que é inigualável por quase qualquer uma das outras grandes nações do mundo.
Se você pensar em todas as guerras travadas no último século por outros grandes países como os EUA, Rússia, China, Índia, é impressionante quão pacífico o Brasil tem sido comparado a essas outras nações.
Acho que precisamos ter uma perspectiva equilibrada, de longo prazo e não cair nesse clima sombrio de que tudo está errado e está se deteriorando.
A respeito da COP-30, que ocorrerá em algumas semanas, quais seriam as ações necessárias para desacelerar os efeitos das mudanças climáticas?
É muito difícil dizer, especialmente por causa da política da administração dos EUA, que basicamente nega completamente que há um problema.
Os EUA são o país mais poderoso do mundo e se ele abdicar da responsabilidade, será muito difícil para outros países preencher a lacuna.
Os EUA estão agora se apressando na corrida da IA, o que tem enormes implicações ecológicas porque tudo que economizamos em energia de outras coisas, a corrida da IA simplesmente suga tudo, e eles estão construindo mais usinas de energia apenas para alimentar a corrida da IA.
E é evidente que a administração dos EUA também está buscando por poder imperial, estão falando em termos imperialistas explícitos.
Até houve fala sobre a anexação da Groenlândia, conversas sobre anexar o Canadá aos EUA.
Você escuta o Presidente Trump falar muito em paz, e é louvável o modo como ele conseguiu, ao menos até certo ponto, estabelecer um cessar-fogo em Gaza.
Mas muito frequentemente, quando Trump fala sobre paz, a impressão é de que ele quer dizer rendição, que todos reconheçam a hegemonia dos EUA e façam o que os EUA mandarem.
E com os EUA buscando dominar o mundo militarmente, economicamente e politicamente, será muito difícil para outros países fazerem os sacrifícios necessários para prevenir mudanças climáticas catastróficas.
E como você avalia o comportamento de Benjamin Netanyahu na tentativa de resolver o conflito em Gaza?
Netanyahu tem tentado prolongar a guerra intencionalmente.
A guerra foi iniciada pelo Hamas, não por Israel, e Israel teve que se defender.
Mas a maior parte do que poderia ser alcançado militarmente foi alcançada, e então a guerra foi deliberadamente prolongada por Netanyahu para evitar uma crise política interna.
A sobrevivência de seu governo politicamente depende de nunca fazer paz, e isso ainda continua.
Então, o cessar-fogo alcançado em Gaza é extremamente frágil e não sabemos se vai durar, e mesmo que dure, o objetivo não é um cessar-fogo temporário.
O objetivo deve ser uma paz de longo prazo, que só pode ser alcançada reconhecendo o direito à existência e o direito de viver com dignidade e segurança de ambos, israelenses e palestinos.
O governo de Netanyahu é baseado na negação disso.
A base ideológica do governo dele é negar que os palestinos tenham algum direito ao próprio país e a qualquer parte da terra entre o Mediterrâneo e o Rio Jordão.
Está no programa básico do governo de Netanyahu que o povo judeu tem direitos exclusivos a toda esta terra e, enquanto for assim, nenhuma paz de longo prazo pode ser alcançada.
Até agora, não parece que ele tenha feito um esforço importante para alcançar este cessar-fogo.
Mas se ele quer empurrar os israelenses e a região em direção a uma paz mais duradoura, o tempo dirá.
Na era digital, a leitura tem sido um tanto negligenciada.
Um estudo recente aqui no Brasil mostrou que mais da metade dos brasileiros não lê livros e entre a minoria que lê, o livro mais significativo liderando as pesquisas é a Bíblia.
O que isso diz sobre a sociedade moderna?
Primeiramente, agora temos novas mídias.
📊 Informação Complementar
Eu, por exemplo, escuto livros tanto quanto leio, por exemplo, quando dirijo meu carro.
Não posso cozinhar e ler ao mesmo tempo, mas posso cozinhar e ouvir ao mesmo tempo.
Eu diria, porém, que a leitura dos livros é essencial para o desenvolvimento da mente humana e do espírito humano.
Se você alimentar sua mente apenas com esses vídeos fast food de dois minutos, não terá a mesma capacidade de sustentar uma linha de pensamento para o desenvolvimento adequado da mente humana.
Muitas pessoas se referem a você como o ‘Guru do Vale do Silício’.
Um grande neurocientista brasileiro, Miguel Nicolelis, me disse que ele te considera um porta-voz da aristocracia.
Como reage a esse tipo de percepção?
Eu sei que meus livros são populares no Vale do Silício, mas muitas das pessoas que lideram o Vale do Silício estão fazendo exatamente o oposto do que eu digo, recomendo e espero que as pessoas façam.
Se você ler meu último livro, Nexus, ele contém muitas críticas não apenas às ações, mas à visão de mundo do Vale do Silício.
Então, não tenho certeza em que se baseia a ideia de que sou o porta-voz dessa região.
Provavelmente é porque você tem interações frequentes com Zuckerberg, Bill Gates…
Isso é verdade, mas há uma grande diferença entre ter interação com alguém e representar alguém.
Acho que essa é uma das doenças [da sociedade]…
Você pode ver isso na esquerda com a cultura do cancelamento: se você simplesmente aparece no palco com alguém, eles acham que isso significa que você está apoiando tudo o que essa pessoa já disse.
Só porque estou no palco com alguém não significa que eu apoie seus pontos de vista.
Quer dizer, qual é o sentido de uma conversa se você só conversa com pessoas com quem concorda?
Mas esses homens que eu mencionei, alguns dos mais poderosos do mundo, estão preocupados com a humanidade ou apenas com as contas bancárias deles?
Eles estão preocupados com muito mais do que as contas bancárias deles, para o bem e para o mal.
Eles entendem melhor do que quase qualquer outra pessoa na Terra quais são as implicações das tecnologias que estão desenvolvendo.
Eles pensam, pelo menos alguns deles, que a tecnologia que estão produzindo, especialmente a IA, acabará com a história humana e a espécie humana como a conhecemos.
E isso iniciará um novo mundo, um novo processo evolutivo com uma nova espécie.
Eles estão fazendo as maiores apostas da história da humanidade.
Eles basicamente pensam que estão fazendo a coisa mais importante da história.
Então, eles não estão preocupados com suas contas bancárias, eles estão preocupados em mudar a trajetória da vida e do cosmos.
Vamos falar um pouco sobre religião.
Você tem alguma opinião sobre o novo Papa?
E, mais do que isso, o que espera do líder da Igreja em 2025?
Sou um homem gay, então discordo da Igreja em várias coisas, mas acho que ela tem um profundo compromisso com a humanidade.
Enquanto enfrentamos essa transformação radical, seja por causa da ascensão da IA, ou das mudanças climáticas, a Igreja poderia desempenhar um papel importante em lembrar as pessoas, como as do Vale do Silício, do valor da humanidade e de proteger pessoas ao redor do mundo.
Eu não sei se a Igreja realmente fará isso.
Eu nunca conheci o novo papa.
Não tenho dados suficientes para avaliá-lo, mas espero que ele desempenhe um papel positivo.
Eu queria mencionar duas discussões importantes que estão ocorrendo, especialmente na cultura popular: os incels, esses rapazes que nutrem ódio contra as mulheres, e também uma crescente fascinação por histórias de crimes reais, serial killers e coisas do tipo.
Até que ponto você acredita que fatores biológicos ou genéticos podem influenciar a natureza cruel de um ser humano?
Ou será que esses tipos de comportamentos horríveis são culpa da sociedade?
A sociedade ao longo de milhares de anos aprendeu a canalizar os impulsos biológicos, sexuais ou violentos, de diferentes maneiras.
Então, quando você tem um fenômeno problemático na sociedade é sempre uma combinação de biologia e sociedade.
Devemos ter muito cuidado para não adotar uma visão negativa da natureza humana.
A biologia dá aos humanos a possibilidade de agir de maneiras cruéis e violentas, mas não os força a isso.
E o que vimos ao longo de milhares de anos é que os humanos têm sido, na verdade, muito bons em canalizar as forças biológicas de uma maneira positiva.
Cem mil anos atrás, os humanos viviam em pequenos grupos de caçadores-coletores e não podiam confiar em ninguém fora do seu grupo, não podiam cooperar com ninguém fora do seu grupo.
Os antigos hebreus e cristãos pensavam que as esposas eram propriedade dos maridos.
Olhe para o mundo agora.
Os humanos fizeram progresso, mas isso não é motivo para complacência.
É um motivo para fazermos esforços ainda maiores, porque temos a prova de que, se tomarmos as medidas certas, podemos criar uma sociedade melhor.
E o seu próximo livro, sai quando?
Talvez em uns dois anos.
Livros levam muito tempo para escrever.
Sapiens demorou uns dez anos, Nexus uns cinco.
Qual será o tema?
Será sobre os mecanismos profundos da história.
Yuval Harari na 25ª edição do HSM+
– Quando: 6 de novembro, às 10h, com mediação de Erick Bretas.
– Onde: Transamerica Expo Center (Av.
Dr.
Mário Vilas Boas Rodrigues, 387 – Santo Amaro).
– Ingressos: a partir de R$ 3.500, pelo site oficial.
Fonte: estadao
05/11/2025 09:55









