“Cheguei às 23h e dormi na calçada”, diz a moça, resignada.
A fila era na frente de um sindicato na área de logística, em uma dessas zonas duras de São Paulo.
Gente com cadeiras de praia, outros sem nada, encostados por ali, pedindo para ir ao banheiro em alguma loja nos arredores.
O motivo?
Escrever uma cartinha dizendo que não quer pagar ao sindicato.
A “contribuição assistencial”, cuja lógica foi extinta na reforma trabalhista, mas ressurgiu das cinzas, dois anos atrás.
Não sei se pelo país de Getúlio ou pela retórica malandra da “importância dos sindicatos”.
Ou as duas coisas.
A reforma votada pelo Congresso extinguiu; nosso STF foi lá e reinventou.
Na prática, recriou um imposto sindical disfarçado.
Em vez de o sindicato ter que obter a autorização do trabalhador, virou o contrário.
É o trabalhador que tem que dizer que não quer pagar.
E daí aquela fila, a complicação.
O truque de ganhar no cansaço daquelas pessoas, que, apesar de tudo, não parecem dispostas a desistir.
A lógica é banal.
A ideia de que o trabalhador não tem, lá no fundo, capacidade para decidir por conta própria se quer ou não contribuir para seu sindicato.
E por isso precisam do Estado dando um empurrão.
O caso me ficou na cabeça.
A síntese quase perfeita do problema brasileiro.
A indiferença retórica dos “de cima”, em Brasília; a fila na madrugada dos “de baixo”, em algum canto de São Paulo.
Na essência, nossa velha e recorrente ideia da hipossuficiência dos cidadãos.
Com um toque de ativismo judicial.
O Supremo que vai lá e muda o que o Congresso decidiu na reforma.
Isso e nosso vezo patrimonialista: a mão amiga do Estado protegendo a corporação sindical.
Nos livros, lemos que isso vem do Estado Novo.
Mas é só prestar atenção para ver que está mais vivo do que nunca.
Está no debate infinito sobre a “pejotização”, porque não temos maturidade para definir contratos de trabalho; no “voto obrigatório”, porque não sabemos se devemos ou não votar; no “fundão eleitoral”, já que somos incapazes de decidir se doamos ou não para partidos e candidatos.
Ainda agora se discute, pela enésima vez, a liberação dos cassinos.
Desde 1946, dizem que por obra de Dona Santinha, mulher do presidente Dutra, somos proibidos de jogar em um cassino, dada nossa ancestral incapacidade de manter o controle.
Nesse caso, com uma ponta de cinismo, visto que apostamos em bets, o tempo inteiro, e no bicho, a cada esquina do Rio.
Mas no mundo paralelo de Brasília a religião da hipossuficiência segue intacta.
Vale o mesmo para o FGTS.
Ainda agora vivemos a experiência curiosíssima de o governo autorizar que você utilize seu dinheiro, trancado pelo próprio governo em uma conta na Caixa, como garantia para que você tome um empréstimo nos bancos a um juro médio de 3,75% ao mês.
A pergunta óbvia: por que não permitir simplesmente que as pessoas usem os 10% ou mais de seu fundo?
Perguntei isso a um burocrata do governo.
Resposta: “Iriam torrar o dinheiro”.
Essa gente irresponsável, incapaz de usar, vejam só, seu próprio dinheiro.
Na reforma da Previdência foi parecido.
Surgiu a ideia de permitir a capitalização.
As pessoas poderiam optar pelo sistema comandado pelo governo ou por uma conta individualizada em um fundo gerido no mercado.
Nem pensar.
O brasileiro seria cognitivamente incapaz de fazer essa escolha.
“Somos capazes, afinal, de pensar com a própria cabeça?”
É o mesmo princípio que sempre impediu que se tivesse uma política de voucher educação.
Se as famílias com maior renda podem escolher a escola dos filhos, no mercado, por que não tratamos de dar o mesmíssimo direito aos mais pobres?
Por que obrigamos que matriculem os filhos nas escolas do governo, que, na média, terminam sistematicamente nas últimas posições do Pisa?
Isso não é sequer um estado do bem-estar social.
É basicamente uma condenação.
Uma privação compulsória de futuro, que atinge as famílias mais pobres.
Argumento?
O mesmo de sempre.
As pessoas não saberiam escolher, o “mercado” tomaria conta e coisas do tipo.
O curioso é nos esquecermos do ProUni.
Esse milagre brasileiro que rompeu com a teoria da hipossuficiência.
E funciona perfeitamente bem, silenciosamente.
Nos últimos anos, foi no tema das liberdades individuais, e em especial da liberdade de expressão, que o truque da hipossuficiência mais funcionou.
O ministro Lewandowski disse que sofremos de “desordem informacional”.
Diante do excesso de informação, na era digital, nós, “eleitores ordinários”, seríamos incapazes de discernir entre o falso e o verdadeiro, escutar ideias de todos os lados e formar sua própria maneira de pensar.
O foco, na época, era censurar um vídeo sobre a corrupção dos governos de Lula.
Mas a tese é genérica.
A ministra Cármen Lúcia achou por bem censurar um documentário sobre a facada em Bolsonaro e a censura passou a correr solta no país.
Ainda agora, a AGU processou uma produtora de vídeos por “distorcer” informações sobre um episódio histórico, o julgamento de Maria da Penha.
A mesma lógica da condenação de Léo Lins.
Quem seríamos nós, brasileiros ordinários, para decidir por conta própria ir ou não a um show humorístico?
Todo o debate sobre a liberdade de expressão, lá no fundo, repousa nesta dúvida bastante simples: somos capazes, afinal de contas, de pensar com a própria cabeça?
O argumento da hipossuficiência é uma espécie de ideologia nacional.
E no geral é um truque.
Ele não serve aos mais pobres e vulneráveis.
Serve a quem concede.
E, ao conceder, controla, dita as regras do jogo, impõe aos demais sua visão de mundo e um modo de viver.
Ou vejamos: forçar as pessoas a pagar aos sindicatos é bom para o trabalhador ou para a burocracia sindical?
Capturar 8% do salário e remunerar abaixo do mercado é bom para os assalariados ou para o governo, que administra o FGTS?
Obrigar os pais a matricularem os filhos na escola do governo é bom para as crianças ou para as corporações da educação estatal?
E praticar a censura, de documentários, piadas ou opiniões políticas, é bom para a sociedade ou para quem controla o aparelho de Estado, os tribunais, e não se envergonha de usar o poder para impor aos demais sua visão de mundo?
Daria para ir longe nisso.
Não vou.
📊 Informação Complementar
A cultura da hipossuficiência é produto de um país profundamente desigual.
Foi a imagem que aquela fila gigante, à frente daquele sindicato, nos deu de bandeja.
“É uma humilhação”, disse uma mulher negra, ainda jovem, numa indignação calma.
Disse e sentou naquela calçada, onde passou a madrugada fria.
Ela não fazia ideia de que foi a decisão fácil de uma Suprema Corte, numa tarde qualquer de Brasília, que fez com que ela tivesse que passar por aquilo.
No fundo é isso que surpreende.
A resignação que vem da assimetria.
A ausência de poder, na base da sociedade.
O desprestígio ancestral de nossa ideia de cidadania.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2025, edição nº 2954
Fonte: veja
27/07/2025 15:06