Psicoterapia em tempos de IA: os riscos de se tratar com uma máquina Psiquiatra pondera sobre uso da inteligência artificial em tratamentos de saúde mental – até que ponto a tecnologia oferece uma real solução?
As pessoas têm livre-arbítrio para se relacionarem com quem – ou o que – lhes parecer mais adequado, seja um boneco de vinil, uma placa de componentes eletrônicos ou, quem sabe até, um ser humano.
Porém, algumas formas de relacionamento podem ser danosas, seja com bonecos, com computadores e, inclusive, com seres humanos.
Na situação das psicoterapias por meio de plataformas de inteligência artificial, que começam a ganhar escala, tal processo não está isento de danos.
A inteligência artificial só vai responder àquilo que foi dito, àquilo que foi manifestado, e a resposta virá de acordo com a maneira que o algoritmo foi preparado.
🔍 Detalhes Importantes
Ou seja, um círculo vicioso que tende a se repetir, com as mesmas respostas, aos mesmos estímulos.
A máquina responderá conforme o que foi instalado em sua tecnologia.
Muitos já “receberam um diagnóstico” ou buscaram um ”tratamento” pesquisando na internet.
O que aparece como resultado dessa busca é baseado naquilo que o indivíduo decidiu informar na pesquisa.
E o que não é informado?
Faz parte da técnica psicoterápica de escutar além das palavras.
O que não é dito faz parte do material com o qual se trabalha nas psicoterapias.
Enquanto a pessoa conversar consigo mesma, por meio de um computador, novos caminhos dificilmente se abrirão.
A tendência será ficar nesse círculo vicioso de pseudocompreensão.
Pseudocompreensão porque a resposta é resultado de uma busca genérica em um banco de dados impessoal, apresentado como se fosse especialmente elaborado para aquele indivíduo.
Por exemplo: uma pessoa fala muito sobre sua família, mas (de forma muitas vezes inconsciente) não menciona um dos membros.
Um bom psicoterapeuta perceberá e apontará para isso.
Outro exemplo: a pessoa usa álcool gel diversas vezes durante uma consulta, mas não menciona o porquê.
Um psicoterapeuta com boa formação buscará entender o impulso que está motivando esse comportamento: medo de contaminação?
Resquício da pandemia?
Vontade de “limpar-se” do sofrimento?
Tais hipóteses ajudarão a esclarecer para o paciente o que ocorre consigo mesmo, levando ao diagnóstico e tratamento correto.
Mas, para escutar o que não é dito, um ser humano precisa estar diante de outro ser humano.
📊 Informação Complementar
Se estamos pseudocompreendidos por uma inteligência artificial, seremos pseudotratados em uma pseudopsicoterapia.
Um círculo vicioso de uma situação na qual a pessoa fala consigo mesma, num exercício narcisista.
Projeção é outro mecanismo que pode ser reforçado nesse tipo de “terapia”.
Ela é um mecanismo de defesa – inconsciente – contra o sofrimento: acreditamos que pertence ao outro características nossas, das quais não nos orgulhamos ou nos causam desconforto.
Assim, uma pessoa vai ter dificuldade de perceber a si mesma, de forma completa, enquanto projetar nos outros características que são suas.
“Não sou eu que sou atrapalhado, os outros que não me escutam” ou “não sou eu que estou com raiva, eles que me perseguem” são frases comuns nesse funcionamento.
Uma psicoterapia só trará uma solução para esse padrão de funcionamento se houver um psicoterapeuta que introduza o questionamento, a possibilidade da pessoa olhar para si mesma de forma mais integrada.
Os sentimentos humanos são universais, mas não podemos cair na armadilha de acreditar que existiria uma solução universal para todos os sofrimentos.
Cada um tem sua história, suas experiências, seu entendimento particular sobre o que acredita e sua própria visão de vida.
E isso é pessoal e intransferível.
Massificar a riqueza de uma vida é empobrecer o futuro do indivíduo e da sociedade.
* Lorena Caleffi é psiquiatra do Serviço de Psiquiatria do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre
Fonte: veja
23/06/2025 12:04