Donald Trump deu um presente para Lula, disse o ex-ministro Maílson da Nóbrega.
Muita gente foi nessa linha desde que aquela cartinha aterrissou em Brasília.
O diagnóstico é óbvio.
Foi o que aconteceu no Canadá, na eleição de Mark Carney, surfando a onda nacionalista embalada pelas ameaças de Trump.
Lula tem faro político, e logo se deu conta de que o melhor é usar aquilo para a política interna.
Falar grosso, fazer piada, reunir empresários, dizer que ninguém manda no Brasil.
O problema é o tempo.
Lula seria mesmo um sortudo se as eleições fossem neste ano.
Mas não são.
À medida que o tempo passa, é possível que o jogo vá ficando complicado.
Se Trump de fato cumprir suas ameaças, a pressão econômica vai aumentar.
Nosso suco de laranja e nossos aviões vão perder atratividade no mercado americano, com óbvios efeitos econômicos.
Em um certo momento, a máxima que passa a valer é simples: governos foram eleitos para resolver problemas.
Ou devem ceder seu espaço.
Se o governo não sair do modo retórico e passar a negociar de verdade, para chegar a um bom acordo, o que era um bônus, para Lula, se converterá em um pequeno inferno.
E com um detalhe: tendo que comparar a nossa situação com a da Argentina, que fez outra diplomacia, costura um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, de modo que logo haverá um turismo de compra de iPhones em Buenos Aires, a melhores preços do que no Brasil.
O que impressiona nisso tudo é o tipo de debate que se criou no país.
De um lado, a ideia de que seria plausível trocar uma redução tarifária pelo relaxamento de um processo judicial no STF.
Ou fazer o Congresso votar uma lei de anistia.
Ou quem sabe o fim dos inquéritos sobre fake news, mudar a regulação das big techs, fim da censura, ou o que for.
Muita gente defende essa tese e chama isso de “coragem”.
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É triste dizer, mas seria o exato oposto.
Trump joga seu habitual chicken game, o “jogo da galinha”, parecido com aquela maluquice dos dois carros acelerando na direção um do outro para ver quem pula fora na última hora.
Se os dois derem uma de valentões, ambos morrem.
Mas, se um pula fora, é o “galinha”.
O que não significa propriamente coragem, não é mesmo?
Então esqueçam.
É Lula, e não a oposição, que surfará a onda, ao menos no curto prazo, e é exatamente isso que as pesquisas da semana estão mostrando.
Mais adiante, ninguém sabe.
Mas a lição me parece clara: mais uma vez o irrealismo e a precipitação pautam as escolhas de uma parte relevante de nossa direita.
Do lado governista, a turma aproveitou a carta para empurrar muita coisa para debaixo do tapete.
A primeira é a própria inércia diplomática.
Lula vai à festa de Putin, faz fotos ao lado de um grupo constrangedor de autocratas (nenhuma figura de linguagem aqui), sugere substituir o dólar por “alguma outra moeda” no comércio internacional, faz troça com Trump e basicamente nenhuma aproximação com o governo americano.
O resultado disso é que um deputado de oposição parece ter mais influência na Casa Branca do que toda a diplomacia do governo.
Fosse uma derrota política, problema nenhum.
Política é assim, se ganha e se perde.
A questão é perder por W.O.
Perder pelas escolhas erradas e pela irrelevância.
Isso e a percepção de uma revista como The Economist definindo Lula como um líder que soa “cada vez mais hostil ao Ocidente”.
“Coragem significa renunciar à tentação do poder”
Os temas interessantes da carta são pontos institucionais.
A menção ao julgamento de Bolsonaro, à censura de cidadãos americanos e à pauta mais geral da liberdade de expressão.
Não acho que nosso sistema de poder cederá a nada disso.
Ministros do STF não disputam eleições e não há nenhum incentivo para que revisem suas posições.
Isso é ótimo.
E sob qualquer aspecto somos nós mesmos, no plano da sociedade, do Parlamento, do debate público, das eleições, que teremos que lidar com nosso novo “iliberalismo”, como algumas vezes escrevi aqui.
Com a relativização inédita de nosso estado de direito no Brasil recente.
Dito isso, as perguntas são: há algum problema com o julgamento de Bolsonaro?
Mesmo fora da Presidência, ele dispõe de foro por prerrogativa de função?
Deveria estar sendo julgado diretamente no STF ou na primeira instância, como determina nosso “devido processo legal”?
Isso para que tivesse os mesmíssimos direitos de qualquer brasileiro, segundo as regras que nós mesmos decidimos.
Instância devida, juiz natural, imparcial, amplo direito de defesa, de verdade, instâncias de recurso.
Vale o mesmo para o tema da liberdade de expressão e censura a cidadãos americanos.
Ainda nesta semana o STF nos deu uma demonstração bastante didática sobre o assunto.
Uma nova ordem de censura contra o economista e comentarista Rodrigo Constantino.
Rodrigo vive no exterior há muitos anos e foi censurado por suas opiniões dois anos atrás.
Passaporte retido, banido da internet, contas bancárias bloqueadas.
Agora está em um hospital, lutando contra um câncer complicado, e foi novamente censurado.
E está ali, nesse gesto um tanto gratuito, a imagem quase perfeita de nosso drama.
Para começar, a censura prévia.
A ordem é para banir uma conta no Rumble, plataforma também bloqueada no Brasil.
Observe-se: uma conta, não um “conteúdo claramente identificado”, como manda a lei brasileira.
O cidadão bloqueado para o futuro, portanto “previamente”, se alguém não entendeu.
Depois, uma ordem de censura a um cidadão americano, por e-mail.
Sem nenhum contraditório, com o réu e advogados sabendo do fato pela mídia.
Por fim, a irrelevância.
Em que sentido uma conta inativa representaria uma grave ameaça à democracia, como reza a lei?
A pergunta, no fim do dia, é um tanto óbvia: anda tudo o.k.
com nosso estado de direito?
Cada um pode fazer seu próprio julgamento.
Não é preciso ir longe aqui.
O Brasil vive uma espécie de dilema do prisioneiro.
Os atores que comandam a disputa política, no país, não encontram razão nenhuma para confiar ou cooperar.
Lula investe no jogo de soma zero do “nós contra eles”; Bolsonaro, no condão mágico de uma interferência externa; e nossa Suprema Corte parece decidida a prorrogar indefinidamente a lógica de exceção, materializada nos inquéritos.
O resultado é a pura e simples perda de confiança.
Segundo o Datafolha, 58% das pessoas dizem ter mais vergonha do que orgulho de nossos ministros.
O problema é que nos tornamos um país-avestruz.
Temos leis, temos uma Constituição, mas nos falta um tipo de virtude republicana para fazer a regra do jogo valer, de verdade, na sociedade.
Ainda por estes dias, escutava uma autoridade, em Brasília, associando a autocontenção judicial à falta de coragem.
Lamento dizer, mas é o oposto daquilo que define a essência de uma República.
Coragem significa renunciar à tentação do poder e fazer cumprir a norma que todos decidimos como sociedade.
Já a covardia só tem um nome: o abuso de poder.
De modo que a saída do impasse brasileiro requer uma boa dose de virtude por parte de quem lidera o país.
E quanto a isso, confesso, não sou propriamente um otimista.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 18 de julho de 2025, edição nº 2953
Fonte: veja
20/07/2025 10:27