O cientista inclassificável que expandiu os domínios da mente Publicação de ‘Rumo a uma Ecologia da Mente’ no país é oportunidade para conhecer a miscelânea e a síntese de ideias de Gregory Bateson É difícil definir Gregory Bateson.
Tão difícil quanto é definir sua obra Rumo a uma Ecologia da Mente, recém-publicada no Brasil pela Editora Ubu.
Tentemos.
Bateson (1904-1980) foi um antropólogo de origem nascido no Reino Unido que fez trabalhos de campo com povos nativos da Nova Guiné e de Bali e, rompendo fronteiras geográficas, acadêmicas e científicas, viria a estudar o padrão de comunicação de animais como golfinhos, participaria de atendimentos psiquiátricos de pessoas com esquizofrenia e de reuniões dos Alcoólicos Anônimos (AA) e ajudaria a erigir um campo do conhecimento, a cibernética (que não se resume, apesar do nome, ao universo digital).
Foi filho de um ás da biologia e da genética, Willian Bateson, casou-se com a famosa antropóloga Margaret Mead, com quem viajou e fez pesquisas pelo planeta, e, radicado nos Estados Unidos, juntou suas experiências de vida e ideias que não respeitavam os limites das áreas do saber para propor um novo arcabouço teórico para compreender o mundo e as relações (entre humanos, animais, máquinas etc.) das quais somos feitos.
Estamos chegando à ecologia da mente.
Mente, para Bateson, não se restringe a essa noção que mora na nossa cabeça.
É um conceito que merece ser ampliado e conectado com o sistema e os sistemas nos quais estamos enredados, como explica uma das maiores especialistas na obra desse intelectual no Brasil, a antropóloga Letícia Cesarino, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
É ela que vai nos dar uma aula sobre o autor e o livro hoje.
Mas, antes de chegarmos lá, permitam ao leitor aqui tecer breves comentários.
Porque Rumo a uma Ecologia da Mente é um livro realmente sui generis – goste-se dele ou não.
Rumo a uma ecologia da mente
O que dizer de uma obra que começa com diálogos entre um pai cientista e a filha ainda criança?
Que avança sobre noções de moral e valores em sociedades originárias e industriais?
Que mergulha na gênese da aprendizagem?
Que busca entender a esquizofrenia e o alcoolismo?
Que propõe uma teoria dos sistemas e um novo olhar para a epistemologia e a ecologia?
Tudo junto e misturado, cada qual em sua parte, como as peças de um quebra-cabeça que o autor nos convida a montar com ele.
O estilo (Bateson adora numerar argumentos) e os caminhos adotados pelo autor em seus ensaios podem até incomodar.
Não se trata de uma jornada tranquila, julgo eu.
Mas é surpreendente, concorde-se ou não com as hipóteses, conceitos, conexões e previsões que brotam ao longo das páginas.
O título tampouco é fortuito.
Estamos rumo a algum lugar.
Sem linha de chegada.
E essa é a proposta de Bateson e sua obra aberta, enfatiza nossa professora e guia.
Com a palavra, Letícia Cesarino.
Afinal, como definir Gregory Bateson?
Costumo definir Gregory Bateson como um cientista peculiar, que ousou praticar história natural do século XIX com as ferramentas científicas mais avançadas disponíveis na sua época, o século XX.
Essa trajetória sui generis só pôde ocorrer pois ele começou sua vida profissional com uma agenda científica já bem sedimentada, herdada da sua vida pessoal.
Os primeiros passos do que viria a ser a ecologia da mente foram dados por seu pai, um cientista importante para a chamada síntese moderna na biologia no início do século XX.
Foi William Bateson que conferiu dignidade científica aos estudos diletantes sobre a hereditariedade do frade austríaco Gregor Mendel, a quem homenageou batizando seu filho caçula de Gregory.
Gregory Bateson já nasce, portanto, com o peso da missão de levar adiante as intuições científicas heterodoxas do pai, especialmente após a morte de seus dois irmãos: John, abatido no front às vésperas do armistício da Primeira Guerra, e Martin, quatro anos depois, por suicídio em praça pública, no dia do aniversário do irmão.
Nos anos da sua formação, durante a década de 1920, Gregory opta pela disciplina nascente da antropologia justamente por não ver na biologia acadêmica espaço para a abordagem holística para o darwinismo que buscava, e que transcendia os divisores que organizavam (e ainda organizam) o campo científico: entre natureza e cultura, positivismo e romantismo, humanos e outros animais, entre ciência, arte e demais expressões da vida.
Sua obra foi toda desenvolvida, portanto, contra a corrente histórica mais geral da profissionalização e hiper-especialização da pesquisa científica que caracterizou o pós-guerra.
Isso não significa que a ecologia da mente não seja uma abordagem científica.
Mas significa que ela só pode ser assim reconhecida se mudarmos a nossa própria concepção de ciência – algo que, acredito, a conjuntura histórica que hoje se abre poderia ensejar.
Rumo a uma Ecologia da Mente é também um livro sui generis.
Qual seria o grande fio condutor entre textos e temas tão diversos abordados ali?
Acredito que o grande fio condutor, não apenas deste livro mas de toda a obra de Bateson, seja a ideia de mente.
O que ele chama de mente é a unidade básica da evolução; esta, porém, não deve ser entendida no sentido racionalista e abstrato que o termo “mente” tem no nosso senso comum.
E tampouco se reduz aos processos pelos quais as espécies naturais emergem; se manifesta também em outras escalas, como as da subjetividade individual, dos coletivos sociais e de sistemas ecológicos e econômicos em escala planetária.
“Mente”, nesse sentido, remete a circuitos de informação que se encontram enraizados na semiótica material do mundo, tanto humano quanto não-humano, e que, embora não neguem a individualidade dos organismos vivos (entre eles, os sujeitos humanos), são em última instância sempre transindividuais.
Esses sistemas mentais são individuados em “todos” que apresentam padrões e processos sempre emergentes, e que requerem ferramentas conceituais novas para sua apreensão adequada.
Para montar essa caixa de ferramentas, Bateson se inspirou em ideias de fontes diversas, como a cibernética, a antropologia, a psiquiatria, a teoria da informação, a etologia, a semiótica, os estudos da evolução e da cognição, chegando a tangenciar saberes que só seriam consolidados após a sua morte em 1980, como as ciências do caos, autopoiese, termodinâmica do não-equilíbrio e a própria ecologia.
📊 Informação Complementar
Mas como congregar tantas ideias, oriundas de tantas disciplinas?
As ideias apresentadas nos ensaios de Rumo a uma Ecologia da Mente buscam desvelar e refinar a compreensão sobre o funcionamento desses sistemas mentais, apreendidos a partir das premissas desse novo paradigma, ainda em construção.
Algumas dessas ideias chegaram a ser sistematizadas por ele como conceitos: é o caso decismogênese, duplo vínculo, platô e os quatro níveis de aprendizagem.
Já outras permaneceram implícitas e sub-trabalhadas, em textos mais enigmáticos mas com um potencial a meu ver revolucionário (no sentido do historiador da ciência Thomas Kuhn), como a teoria da brincadeira e da fantasia.
Trata-se, portanto, de um projeto inacabado, que se realiza na medida em que outros pesquisadores, dentro e fora da academia, engajem e levem à frente os insights oferecidos por Bateson.
Quão bem aceita tem sido a teoria do duplo vínculo, especialmente se levarmos em conta que Bateson recebeu críticas por sua visão sobre a origem da esquizofrenia?
Considerando o momento histórico em que a escola de Palo Alto desenvolveu seus estudos sobre a esquizofrenia nos anos 1950 e 1960, a teoria do duplo vínculo, desenvolvida para explicar a etiologia dessa condição em contradições nos processos de deuteroaprendizagem, teve impacto significativo.
Passado mais de meio século, era de se esperar que o conceito, em sua aplicação específica ao contexto da psiquiatria, fosse parcialmente superado.
Há, no campo da saúde mental como um todo, uma tendência à transformação constante dos diagnósticos e das formas de abordá-los.
Hoje, por exemplo, a própria categoria da esquizofrenia como entidade nosológica tem sido problematizada, e até abandonada, por muitos.
Não obstante, o trabalho de Bateson e seus colegas deixaram legados perenes na forma de enquadrar esses e outros fenômenos mentais, notadamente no campo da terapia sistêmica.
Passou-se, por exemplo, a considerar como unidade primeira não o indivíduo doente, mas todo o sistema mental com o qual ele se co-constitui, como a família.
Não se trata, então, de uma teoria que caducou?
Acredito que a própria questão sobre a obsolescência ou não de conceitos batesonianos esteja mal colocada.
Se partirmos do que realmente implica a proposta da ecologia da mente, qualquer tentativa de falsear (nos termos do filósofo Karl Popper) as ideias de Bateson, dentro das divisões disciplinares convencionais, está fadada a recair em paradoxo, porque a ecologia da mente, por premissa, não respeita essas divisões.
Como qualquer outra ideia batesoniana, o conceito de duplo vínculo necessariamente extrapola o contexto da sua “descoberta” e, portanto, não diz – nem nunca disse – respeito apenas a fenômenos psiquiátricos.
E, com efeito, o que se viu nas décadas seguintes foi a extrapolação do conceito do duplo vínculo para além do campo da psiquiatria, passando a influenciar não apenas outras áreas acadêmicas, mas também empreendimentos práticos.
Talvez o exemplo mais contundente seja a influência crucial de ideias como duplo vínculo e cismogênese sobre o fundador do campo teórico da chamada “guerra híbrida” nos Estados Unidos durante a Guerra Fria, o coronel John Boyd.
Mas basta uma busca rápida para notar que duplo vínculo e outros conceitos batesonianos ainda são correntes em diversos ramos da psicologia, além de aplicações práticas em campos envolvendo organizações, jogos e até coaches empresariais e de relacionamento.
Infelizmente, e talvez inevitavelmente, muitas dessas aplicações se dão de forma reducionista e até distorcida – daí a importância de uma tradução mais fundamentada da ecologia da mente para o público leigo.
Há algum ensaio no livro que melhor sintetize o pensamento de Bateson?
Qual seria a ideia fundamental desse autor, na sua concepção?
Rumo a uma Ecologia da Mente deve ser visto como um “todo”, cujas partes se interrelacionam e formam, elas mesmas, um sistema.
Mas, se eu fosse destacar um capítulo que melhor articula boa parte dessas ideias em um argumento único, seria um texto publicado em 1971, “A cibernética do ‘eu’: uma teoria do alcoolismo”.
O título do ensaio é um pouco enganador, pois ele apresenta menos uma teoria do alcoolismo do que uma exploração ecológica do método terapêutico dos Alcoólicos Anônimos (AA), que Bateson conheceu junto a pacientes do Hospital dos Veteranos em Palo Alto.
Nesse texto, ele propõe uma explicação que reenquadra o fenômeno da adicção alcoólica a partir das principais premissas da ecologia da mente, argumentando que o método de AA espelha intuitivamente muitas delas.
Entre estas, talvez a principal seja de que “a unidade de sobrevivência – seja na ética, seja na evolução – não é o organismo nem a espécie, mas sim o sistema mais amplo ou ‘poder’ dentro do qual vive a criatura.” Sob essa perspectiva, Bateson analisa a intoxicação alcoólica como um “atalho” do sujeito para uma epistemologia que reconheça essa complementaridade fundamental entre ele e o “todo”, que não é oferecida pela sociedade convencional, altamente individualista.
Nesse sentido, a terapia do AA implica não em “curar” o sujeito desajustado, devolvendo-o ao sistema que produziu originalmente a patologia, mas oferecer a ele a “conversão” a um sistema alternativo em que suas premissas complementares pudessem ser contempladas (os círculos de AA).
Por isso, o método envolve, como primeiro passo, “quebrar” a premissa de que o indivíduo tem autonomia e controle completos sobre sua vida – o que abre caminho para um (re)equilíbrio no seu sistema de relações.
Assim como no caso da esquizofrenia e do duplo vínculo, AA e suas formas de implementação e eficácia foram se transformando ao longo das décadas.
Mas, ainda que a análise do objeto em si não seja válida com tanta precisão quanto no momento em que Bateson escreveu, as premissas da “cibernética do ‘eu’” permanecem sendo ferramentas úteis para a compreensão ampliada de outros fenômenos.
Estes incluem, por exemplo, processos que envolvem comportamentos transindividuais, relações humano-máquina, radicalização e escalamento de conflitos, patologias sistêmicas, relações inter-espécie, adicção e outras formas de heteronomia (ou seja, delegação da decisão para o ambiente).
Nestes tempos marcados por algoritmos, redes sociais e IA, qual seria a mensagem mais urgente da obra de Bateson?
A ecologia da mente se erige sobre premissas que são cruciais para compreender os sistemas mentais que decorrem da interação recursiva entre usuários humanos e máquinas cibernéticas.
Sua “cibernética da vida” é capaz de abarcar muito mais complexidade que a cibernética das máquinas, com base na qual a indústria de tecnologia se desenvolveu.
É.
portanto.
capaz de vislumbrar os perigos de uma recursividade humano-máquina hiper-acelerada, desregulada e impulsionada por lógicas que, historicamente, nada têm a ver com democracia e bem-estar, e sim, como muitos autores, jornalistas e egressos da própria indústria vêm mostrando, com militarização, propaganda, financeirização, eugenia… O resultado não poderia ser outro: um sistema desequilibrado, que se maximiza para poucas variáveis (notadamente, lucro), produzindo mundos fantasiosos que passam a se retroalimentar com o mundo real na direção do que Bateson chamou de uma “ecologia das ideias danosas”.
Essa expressão, que se tornou conhecida através da obra de Félix Guattari [filósofo e psicanalista francês], denota sistemas com feedback positivo em excesso, que se tornam como parasitas de si mesmos e, se não contidos ou reequilibrados, tendem a escalar para derivas em última instância suicidárias (em termos cibernéticos, runaway).
Então Bateson foi, digamos, profético nesse sentido?
É isso que Bateson antecipou em suas discussões pioneiras sobre a crise ecológica, e o que devemos ter em mente na medida em que a indústria tech, junto com setores políticos neoreacionários, aceleram nossas sociedades rumo a um futuro que não prevê lugar para todas e todos.
Ele nos ensinou a olhar para os “padrões que conectam” processos subjetivos do dia a dia – como a epidemia de problemas mentais, a sensação de impotência e de rumo a um “fim do mundo” – com processos que se desenrolam nos circuitos longos da economia, da indústria e da automatização.
Só assim seremos capazes de vislumbrar saídas reais – e não fantasiosas – para os duplo vínculos em que nos encontramos.
Fonte: veja
04/09/2025 10:08