O caso da astronauta brasileira: quando mentir passa dos limites Episódio desmascarado recentemente evidencia fenômeno conhecido como pseudologia fantástica – nesses casos, a mentira ultrapassa o ponto do não retorno A jovem mineira que se apresentava como a primeira mulher astronauta do Brasil parecia saída de um roteiro de superação.
Nas redes sociais, falava sobre uma missão espacial marcada para 2029, postava fotos em trajes espaciais com o logo da NASA, mencionava afiliação com o prestigiado MIT e dizia estar matriculada em um mestrado em “computer applications” na Universidade Colúmbia.
A imprensa se encantou.
Centenas de milhares de seguidores vibraram.
Até que a NASA resolveu entrar em cena com um comunicado seco: “Ela não trabalha aqui.
Nunca trabalhou.
Seria inapropriado afirmar qualquer vínculo com a NASA.” As conexões com MIT e Columbia não foram confirmadas.
O perfil no Linkedin foi apagado.
Fim do ato.
📌 Pontos Principais
Mas o caso não saiu de órbita tão rápido.
Escancarou algo mais profundo.
Mostrou como, mesmo sob holofotes, há quem sustente versões claramente fabricadas — como se repetir fosse o mesmo que provar.
A jovem nunca disse, literalmente, que era funcionária da NASA.
Mas aceitava convites como tal, posava em eventos como tal, e não corrigia os mal-entendidos.
Apresentava-se como astronauta — mas era apenas uma Astronaut Candidate (ASCAN) em um programa privado, sem qualquer vínculo com a NASA e sem garantia de que um dia voaria.
O CEO da empresa onde ela fez o workshop tentou defendê-la, dizendo que talvez tenha apenas “embelezado um aspecto ou outro” com entusiasmo juvenil.
Mas essa tentativa de suavizar o enredo só agravou a situação: revelou não apenas a mentira em si, mas o grau de naturalização com que ela é tratada — como se fantasiar a realidade fosse um detalhe aceitável.
Mentir, afinal, é comum — quase banal.
Pesquisadores que adoram quantificar até o inquantificável estimam que mentimos, em média, de uma a duas vezes por dia.
Isso entre pessoas “normais”, em situações corriqueiras: o clássico “amei o presente”, ou o inevitável “já estou saindo” dito ainda de pijama.
Quase todos nós distorcemos os fatos aqui e ali — por vaidade, autoproteção, para evitar conflitos ou só porque o silêncio parecia constrangedor demais.
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Mas há uma linha tênue (e escorregadia) entre o retoque e a fraude.
Um ponto de não-retorno narrativo.
Aquele momento em que a história inventada se costura tão bem à nossa identidade que desmenti-la seria como puxar a linha de um suéter: tudo desmancha.
É aí que a mentira deixa de ser um deslize social e vira modo de existência..
Essa transição frequentemente acontece sem alarde.
O termo “drift moral”, usado na sociologia, descreve com precisão esse fenômeno: um deslizamento ético gradual, quase imperceptível, em que atitudes que antes contrariavam nossos próprios princípios vão sendo racionalizadas e incorporadas à rotina — até parecerem absolutamente normais.
O que começa com algo aparentemente inofensivo pode, com o tempo, se revelar profundamente problemático.
Pense naquele colega que pega um táxi da empresa fora do horário de serviço.
“Qual o problema?
A empresa tem dinheiro, “explora” os funcionários, então arque com alguns custos!”.
Depois ele passa a forjar recibos de almoço.
Quando se dá conta, está declarando três viagens fictícias por mês.
Nada disso nasceu como um plano maligno — mas as pequenas distorções se acumulam.
Essas decisões frequentemente não vêm em bloco.
Elas acontecem uma de cada vez, one day at a time, se instalam como goteira: uma pequena infiltração por dia, até que um dia o teto desaba — e ninguém sabe mais quando começou.
Essas construções narrativas nem sempre seguem um roteiro racional.
Às vezes, elas se tornam tão bem encenadas — e tão recompensadas — que é difícil saber se ainda estamos diante de uma mentira estratégica (“amiga, arrasou com o corte de cabelo!”) ou de algo mais profundo.
É aí que começamos a flertar com um território psicológico mais complexo: o da pseudologia fantástica.
Nem toda mentira elaborada entra nessa categoria — mas há casos em que a linha entre invenção proposital e fabulação compulsiva começa a se apagar.
E é possível que a jovem “astronauta” habite exatamente essa zona cinzenta.
A pseudologia fantástica ou mitomania é um fenômeno psiquiátrico raro, geralmente associado a certos transtornos de personalidade, em que a pessoa constrói narrativas falsas de forma crônica — não para evitar punições ou obter ganhos diretos, mas para manter viva uma versão mais admirável (ou suportável) de si mesma.
Quer reconhecer os traços desse quadro?
A mentira, nesses casos, é contínua — não aparece só sob pressão ou para escapar de um problema.
Contar essas histórias provoca uma espécie de “barato narrativo”, uma satisfação interna difícil de explicar.
As narrativas são fantasiosas, cheias de detalhes vívidos, e têm algo de hipnótico — chamam atenção, despertam empatia, geram admiração.
Muitas vezes misturam elementos reais com invenções improváveis.
E quase sempre colocam a pessoa sob uma luz positiva: heroína, vítima resiliente, gênio incompreendido.
Mas talvez o ponto mais importante seja este: o impulso por trás dessas mentiras não é (principalmente) externo, como ganho econômico.
É interno.
Não se mente especificamente para ter.
Mente-se para ser.
No limite, pense mais no ex-político George Santos do que nos fraudadores econômicos como Bernie Madoff.
É impossível ignorar o papel das redes sociais nesse cenário.
Me pergunto (e já respondo) até que ponto a busca por seguidores, curtidas e validação instantânea não tem inflado o impulso de ajustar a realidade com um filtro mais sedutor.
A internet jura valorizar a autenticidade, mas recompensa a narrativa mais fabulosa — desde que bem editada, aspiracional e convincente.
Relatórios do Integrity Institute, um grupo multiprofissional que monitora as mídias sociais, mostram que conteúdos com desinformação tendem a ter mais engajamento do que as que refletem a realidade – o que cria um incentivo estrutural para mentir.
Nesse palco contínuo, é difícil resistir à tentação de performar versões aprimoradas de si mesmo.
Isso ajuda a entender o comportamento — mas não a justificar.
📊 Informação Complementar
Mentimos.
Quase todos.
Por afeto, por medo, por autoimagem.
O problema começa quando a mentira deixa de ser um recurso pontual e vira moradia.
Quando é mais fácil viver do personagem do que desmontá-lo.
E, como a NASA mostrou, às vezes basta uma checagem simples para fazer descer toda a nave-narrativa.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e doutora pela Unifesp.
É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros.
Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia.
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Fonte: veja
23/06/2025 12:04