Memória e identidade: o papel da comida na imigração árabe ao Brasil No livro ‘Brimos à mesa’, Diogo Bercito mostra como os imigrantes vindos da Síria e do Líbano se conectam por meio da culinária Quando vieram ao Brasil no começo do século 20, os imigrantes egressos de países do Oriente Médio, especialmente da Síria e do Líbano, trouxeram em sua bagagem receitas e ingredientes tradicionais de sua terra.
Para eles, a comida era um elemento primordial de conexão com suas origens.
E, com o tempo, a comida árabe feita no Brasil se transformou, criando uma culinária única no mundo.
Essa é a história que o pesquisador e jornalista Diogo Bercito conta em “Brimos à mesa: Histórias da culinária árabe no Brasil” (Fósforo), que acaba de chegar às lojas.
O livro conta a trajetória de vários imigrantes que ajudaram a popularizar receitas de quibe, esfiha e tabule no país, bem como a fundação de restaurantes que até hoje oferecem uma ideia de tradição.
E vai além, mostrando o papel da alimentação na preservação da memória, da cultura e da identidade.
Em entrevista ao Conta-Gotas, Bercito revela como começou a pesquisar a imigração árabe no Brasil, a transformação da culinária árabe no país e o elemento agregador das refeições em família.
Este é seu segundo livro sobre os imigrantes árabes no Brasil.
Depois da política, agora você fala de comida.
De onde veio a inspiração para esses trabalhos?
Me interesso pelo Oriente Médio há cerca de 19, 20 anos.
Na primeira viagem que fiz sozinho, juntei dinheiro, tirei férias e passei pela Palestina, Egito e Jordânia.
Estudo árabe há mais de 10 anos.
Morei no Marrocos, e depois em Jerusalém, como correspondente da Folha, por dois anos.
Morei ainda no Líbano e no Egito.
Sempre desenvolvi essa relação com a região, passando pelo jornalismo.
Além disso, o Brasil tem uma relação muito próxima com o Oriente Médio, especialmente a comunidade sírio-libanesa.
Que é resultado dessa população vasta que veio do leste do Mediterrâneo, formando uma das maiores comunidades árabes fora do Oriente Médio.
Quando me dei conta disso, as peças começaram a se encaixar.
Brimos à mesa: histórias da culinária árabe no Brasil
E por que analisar o papel da comida?
Nos últimos 15 anos, pesquisei centenas de arquivos, documentos públicos, jornais, revistas e livros em árabe.
E me dei conta do quanto a comida é importante.
Até hoje, se pensarmos nos descendentes da terceira ou quarta geração dessa migração histórica de árabes que vieram ao Brasil, a comida é o único laço com seus antepassados.
Esses descendentes não falam árabe, nunca estiveram no Oriente Médio, muitas vezes nem praticam a mesma religião.
Mas continuam comendo comidas cujas receitas vêm desses imigrantes.
Mas as receitas mudam ao longo dos anos?
Sim.
Esse é um dos aspectos mais fascinantes.
A comida é um artefato cultural dessas transformações.
Ela vai mudando de acordo com as condições locais, com o que dá e o que não dá para fazer.
É uma dinâmica muito viva.
A carne é um bom exemplo.
No Oriente Médio, quibe, esfihas e outros preparos são feitos com cordeiro.
Muitas fontes com quem conversei contaram que precisaram adaptar as receitas porque aqui o cordeiro é muito menos frequente que a carne bovina.
Além disso, vê-se que o cardápio de pratos árabes no Brasil é restrito.
Tem quibe, tabule, esfihas e algumas outras coisas.
Mas quando visita os países, como Egito, vê que há muitas comidas que não são feitas aqui.
Há também um elemento agregador no preparo dessas receitas familiares.
É muito bonito.
A comida é também um artefato social, ainda mais na diáspora.
Preparar o prato que lembra da terra, reunir as pessoas em torno da mesa e relembrar do passado.
É algo muito forte.
Não é que a música não tenha algo semelhante, ou a literatura.
Mas a comida a gente come.
Faz parte do corpo.
É uma coisa quase primitiva.
Come-se com a mão.
E há fartura.
Essa é outra história que conto no livro.
Durante a Guerra, muitas famílias passaram fome.
E por isso há uma valorização tão grande da carne.
Além da hospitalidade, de receber as pessoas para refeições longas e fartas.
E como os restaurantes ganharam espaço nessa consolidação da comida árabe no Brasil?
Desde o começo os imigrantes criaram espaços para servir sua comida.
Há registros do começo do século no Rio de Janeiro, na Rua da Alfândega.
Os imigrantes foram abrindo restaurantes, empórios e importadoras.
Havia uma questão comercial.
Mas o hábito de comer fora de casa, é mais tardia e ganhou força ali nos anos 1950.
Há duas grandes referências: o Almanara e a Brasserie Victoria, que popularizam a ideia de comer comida árabe na rua.
E caiu no gosto dos paulistanos.
Dessa época, vários restaurantes continuam abertos, como o Almanara, a Brasserie, o Halim, a Tenda do Nilo e o Rosima.
São estabelecimentos que estão há muito tempo trabalhando na ideia de tradição, na necessidade de insistir no resgate do passado.
Eles preparam as receitas como eram feitas há séculos pelas famílias.
Há um esforço muito claro de preservação, do congelamento da identidade.
E isso também pode ser comercializado.
Quais receitas sofreram mais alterações?
E quais permanecem mais parecidas com as versões servidas nos países de origem?
Com exceção do tipo de carne, o quibe é um bom exemplo de receita que é feita de forma semelhante.
As pastas, como homus, babaganuche, coalhada, se mantiveram bem fieis.
A esfiha é o contrário.
Lá, por exemplo, a fechada não é considerada esfiha.
É outra receita.
Além dos recheios.
Frango desfiado, calabresa, chocolate, nutella.
O brasileiro levou ao limite.
Se alguém pensasse em servir uma esfiha de calabresa, que é feita com carne de porco, em um país de maioria muçulmana, com certeza causaria celeuma.
Você percebe uma desconexão do brasileiro com alguns desses pratos?
📊 Informação Complementar
Ou todos sempre associam o quibe do boteco aos árabes?
Acho que essa desconexão é percebida mais claramente no quibe e na esfiha.
Porque realmente você encontra em qualquer lugar, ao lado de outros salgados, como coxinha, risole, pão de queijo e pão de batata.
Em um contexto mais variado, não são sempre feitas por descendentes de árabes.
Também não são consumidas por esse público.
Então não há nenhum elemento étnico.
Isso se perdeu de forma drástica – e não digo que isso é bom ou ruim.
É apenas uma constatação.
Existe bastante crítica na academia sobre o multiculturalismo e a ideia de que qualquer um pode abrir um restaurante que serve qualquer comida.
Eu não sei o quanto isso é ruim.
O exemplo do Habibs é bastante elucidativo.
Foi aberto por um imigrante que veio de Portugal, sem nenhuma relação com a cultura árabe.
Sua proposta não era resgatar receitas tradicionais nem preparar a esfiha mais autêntica.
Mas teve um papel fundamental na popularização das esfihas, especialmente nos anos 1990.
Muita gente não tinha nem vocabulário para se referir a esses salgados.
Fonte: veja
08/07/2025 19:32