O presidente argentino Javier Milei teve quase 50 dias para recalcular a rota depois de sofrer uma dolorosa derrota nas eleições provinciais de Buenos Aires em 7 de setembro.
O cálculo foi certeiro.
No último domingo, 26, seu partido protagonizou uma reviravolta que surpreendeu cientistas políticos, consultorias de risco, o mercado financeiro e instituições internacionais.
No domingo, 26, a coalizão A Liberdade Avança – que reúne tanto o partido libertário de mesmo nome como os partidos da direita tradicional como PRO (Proposta Republicana) e UCR (União Cívica Radical) – conquistou uma vitória histórica e será a maior bancada na Câmara de Deputados.
Com isso, o governo terá de dialogar com apenas duas dezenas de deputados para avançar seu projeto de reformas.
No Senado o cenário é ainda mais favorável.
A casa ficou repartida em terços, com os libertários e os peronistas – principal força de oposição, de cunho populista – empatados em 24 cadeiras.
Com pouquíssimas negociações a serem feitas.
O que explica a contundente vitória de Milei nas urnas ontem, apesar de todos os prognósticos?
Analistas ouvidos pelo Estadão explicam: Milei ouviu os eleitores e abaixou o tom, e acertou na estratégia ao polarizar a campanha e apostar no antikirchnerismo.
Também contou com o erro dos peronistas ao separar as eleições da província e as nacionais – e teve até um empurrãozinho de Donald Trump.
Milei abaixa o tom
O presidente foi muito rápido, em 7 de setembro, em reconhecer a derrota contundente que sofreu em Buenos Aires.
Em seu discurso após os resultados, garantiu ter ouvido que os argentinos não sentiam os resultados de suas medidas econômicas e prometeu que iria corrigir todos os seus erros.
Esse discurso também foi para os mercados financeiros, que estavam preocupados.
Embora estivesse muito mais contente – a ponto de cantar – do que nas eleições de setembro, ele repetiu no domingo, 26, o mesmo discurso tranquilizador ao celebrar os resultados.
“Foi um discurso mais esperançoso, de certa forma, porque falou de construir com outras forças, falou que vai governar para os 47 milhões de argentinos, ou seja, é um discurso diferente do que vinha sustentando”, afirma Lourdes Puente, cientista política e professora na UCA (Universidade Católica Argentina).
Houve um forte endosso [dos eleitores] ao dizer que pode fazer o que precisa ser feito.
O governo teve sucesso em argumentar que se não recebesse apoio, não seria capaz.
Nesse ponto, as pessoas foram votar, talvez não muito convencidas de que era bom votar nos candidatos libertários, mas mais convencidas de que votar nos outros poderia ser uma regressão Lourdes Puente, cientista política e professora na Universidade Católica Argentina Milei escutou mesmo.
Tanto que, antes das eleições, já havia comunicado que faria uma reforma em seu gabinete.
Os anúncios de mudança seriam nesta segunda-feira, 27, mas o libertário pediu um pouco mais de tempo e deve fazê-lo após 10 de dezembro, quando o novo Congresso assumirá.
“Na Argentina, o povo dá aos seus líderes um mandato que às vezes dura dois anos, três, quatro.
Normalmente não são nem muito curtos nem muito longos.
E o mandato de Milei era pra controlar a inflação”, observa Fabian Calle, professor de ciência política na UCA.
“O mandato dele foi estabilizar a economia.
E ele estabilizou a economia”.
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Apostar no antikirchnerismo
As eleições de meio mandato, historicamente, servem de plebiscito de quem está na Casa Rosada.
Sabendo disso, Milei fez uma aposta arriscada: jogar com a polarização.
Após a derrota na província, ele partiu para o discurso do ou nós ou o retrocesso kirchnerista.
O kirchnerismo é a ala mais à esquerda dentro do peronismo (que é diverso).
Foi criado pelo ex-presidente Néstor Kirchner e hoje é liderado pela ex-presidente Cristina Kirchner e o governador de Buenos Aires, Axel Kicillof.
A coalizão Força Pátria é a representante deste movimento e foi justamente ela que saiu para brigar com Milei nessa eleição.
“O governo foi bem-sucedido na sua campanha em polarizar e apostar no seu discurso de ‘não voltemos atrás, falta pouco e estamos na metade do caminho’”, afirma Lourdes.
Ao partir para esse discurso, Milei lembrou que a Argentina que ele encontrou em 2023 foi justamente a que deixou o kirchnerismo, e votar por eles seria retornar a este ponto.
Era um discurso arriscado.
Dias antes, essa mesma força política havia ganhado de Milei por 14 pontos porcentuais nas eleições de província em Buenos Aires.
Mas o presidente confiou que moveria suas bases para responder e despertar o chamado “voto envergonhado” que não estava capturado nas pesquisas.
Por mais que os argentinos não estejam de todo contentes com o estado atual da economia, o medo de voltar ao passado se sobressai a essa insatisfação.
“Depois das eleições provinciais de setembro, o que Milei fez foi se voltar para as pessoas desinteressadas da política e dizer: ‘cuidado que podem voltar os de 2019-2023′ [o governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner]“, explica Fabian Calle.
Libertário em xeque: a Argentina de Milei; 1º episódio: Milagre econômico?
Como dois anos de ajuste fiscal de Javier Milei mudaram a economia argentina.
Crédito: Carolina Marins | TV Estadão
Eleições divididas
O que ficou claro na noite de domingo, 26, também foi um erro letal do peronismo: dividir as eleições locais das nacionais.
Na Argentina, além de eleições para o Congresso Nacional, também ocorrem ao mesmo tempo pleito para os Legislativos locais.
As províncias, no entanto, tem a prerrogativa de decidir se farão suas disputas no mesmo dia que as nacionais ou antes.
Pela primeira vez a província de Buenos Aires decidiu fazer antes.
Isso já causou uma cisão interna no peronismo.
Quem dividiu foi o governador Kicillof, indo contra Cristina Kirchner.
Ela queria as eleições conjuntas, para não dissipar a popularidade dos líderes locais.
Em um primeiro momento parecia que Kicillof havia acertado ao sair como grande vencedor em setembro.
Mas a leitura foi equivocada.
“O desdobramento [das eleições] da província de Buenos Aires acabou jogando a favor de Milei porque deixou que, na primeira, os governos locais atuassem e obtivessem seus próprios votos.
E nesta, as pessoas não tiveram que votar em nenhum prefeito de que gostassem ou algo assim.
Simplesmente era entre os mesmos nomes de sempre [do peronismo] ou Javier Milei”, explica Lourdes.
Em eleições locais, governadores, prefeitos e deputados provinciais têm muito mais força do que o presidente.
Isso pesou nas eleições de 7 de setembro, porque a máquina de mobilização é o peronismo que tem.
Já Milei, por ter um partido pequeno, não conta com essa força, mas conta com o poder de atração de seu próprio nome.
Os argentinos que foram votar no domingo escolheram os candidatos do A Liberdade Avança sem olhar para seus nomes, mas sim para o de Milei.
Cristina Kirchner está presa e inelegível.
Axel Kicillof teve uma carreira de presidenciável que sobreviveu 50 dias.
No fim do dia, a única liderança nacional que existe hoje é Javier Milei.
Tanto que, ao nacionalizar o pleito, Milei conseguiu uma vitória histórica na mesma província peronista que em setembro o castigou: Buenos Aires.
“A província de Buenos Aires mostra que o aumento da participação eleitoral beneficiou Milei, e capturou votos que na eleição provincial preferiram forças mais locais, e não escolheram as listas do A Liberdade Avança”, afirma Facundo Cruz, cientista político e analista de dados eleitorais.
“Neste momento, sim, conseguiram capitalizar e absorver esse voto não peronista”.
Respaldo americano
Por último pode ter jogado a favor de Milei o forte respaldo que recebeu do seu maior aliado, os Estados Unidos.
Em um primeiro momento, o presidente Donald Trump assustou os argentinos ao dizer que só ajudaria o país se Milei ganhasse.
Os mercados reagiram mal à frase, pois havia sinais de ingerência.
Mas, no fim, para os eleitores, pode ter contado o medo do que aconteceria caso a Argentina perdesse a mão do maior país do mundo em um momento de crise.
“Houve uma sensação de que é melhor o gigante estar conosco para ver se não caímos”, especula Lourdes, ressaltando que essa interpretação é subjetiva.
“Foi como dizer: não sei se gosto, mas com Milei estamos seguros de que não vão nos deixar cair.
Um pouco essa sensação, me parece”.
“Há 50 anos, os argentinos, independentemente de sua ideologia, pensam em dólares.
O povo argentino não vota dizendo: ‘este é um aliado dos EUA, então vou votar contra’.
O povo argentino basicamente vota, há muito tempo, em alguém que lhe oferece alguma certeza econômica.
O próprio Peron sabia disso”, endossa Fabian Calle.
Fonte: estadao
27/10/2025 17:44










