ESPECIAL DE SANTIAGO – Em 2019, o Chile viveu um dos momentos mais turbulentos da sua história recente.
O chamado “estallido social”, que levou milhões de pessoas às ruas para protestar contra o governo e descortinar os problemas do país, em 2021 culminou na eleição de uma Convenção Constitucional que escreveria uma nova Carta Magna, e na posse do esquerdista Gabriel Boric como presidente.
O que parecia uma guinada à esquerda, mudou completamente e hoje, o favorito para assumir a presidência em 2026 é José Antonio Kast, um dos principais símbolos do crescimento da direita nos últimos anos.
Claudia Heiss, cientista política da Universidad de Chile, aponta que um dos fatores que contribuíram para esse crescimento é a crise de representatividade política, que o país vive desde a década passada e é sustentada pela desconfiança nos partidos políticos e, principalmente, pelo maior distanciamento entre elite e população.
“Isso ficou bem nítido após a reinstauração do voto obrigatório no plebiscito constitucional de 2022, quando a proposta da Convenção foi rejeitada.
Somaram-se cerca de 5 milhões de votos, a maioria vindos de pessoas descontentes, que estiveram ausentes da política nos anos anteriores”, destaca.
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Para a acadêmica, atualmente o voto desse eleitorado é uma fonte de apoio importante para a extrema direita, principalmente, por ser antissistêmico e por contestar a política.
Claudia também ressalta que depois da onda de protestos entre 2019 e 2020 e das fracassadas tentativas de elaborar uma nova Constituição, as agendas sociais, que motivaram o “estallido social”, ficaram de lado em prol da segurança pública e da segurança econômica.
Agendas estas que, geralmente, beneficiam mais a direita, que costuma propor medidas severas para combater a violência, por exemplo.
Diretor do Instituto de Estudios de la Sociedad, Claudio Alvarado vai além e afirma que após o “estallido social” e o primeiro processo constitucional, “ficou claro que as esquerdas estavam muito mais desconectadas com a realidade do Chile do que elas mesmas pensavam.
Por outro lado, as direitas mostraram muito mais conexão com as inquietudes básicas dos chilenos em matéria de segurança e economia”, diz.
Uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudios Públicos (CEP) e divulgada em maio corrobora essa opinião.
A sondagem mostra que “ordem pública e segurança das pessoas” devem ser a prioridade para o Chile nos próximos dez anos, seguida por “alto grau de crescimento econômico”.
A “necessidade de maior igualdade de oportunidade para as pessoas”, que era a prioridade para os chilenos há uma década, agora ocupa a terceira posição.
Estela Viera está entre os que acreditam que combater o aumento da violência no país é urgente.
Moradora de Providencia, região de classe média da capital Santiago, a dona de casa é categórica.
“Sou favorável à pena de morte em alguns casos.
Muitos presos já não têm mais solução, não vão se recuperar”, afirma.
Aos 73 anos, ela diz que “tem um pé na direita extrema e outro na tradicional” e que jamais votaria na esquerda.
Além disso, se considera aberta em relação a alguns assuntos e não concorda que direitos garantidos sejam retirados ou pessoas sejam perseguidas por sua orientação sexual.
Questionado se o crescimento da direita no país é algo estrutural, Alvarado acredita que o cenário está aberto.
“O Chile experimenta uma crise de segurança, o país não cresce, hoje se fala em emergência trabalhista…
e tudo isso tem prejudicado o governo Boric.
A curto prazo, é muito claro que o quadro é mais favorável para a oposição e isso já pode ser verificado nas eleições municipais e regionais do ano passado, quando a direita avançou significativamente.
Eu não me atreveria a dizer que essa mudança é estrutural, mas também não descartaria”.
As faces da direita Após 20 anos de governos da Concertação — coalizão que presidiu o Chile após o período militar (1973-1990) —, a direita voltou ao poder em 2010, após a vitória de Sebastián Piñera (Renovação Nacional).
Para Roberto Matos, 31, o ex-presidente é uma grande referência.
“Sou de centro-direita porque ela é mais democrática, acredita no diálogo, e Piñera era um exemplo disso.
Tinha habilidade para fazer bons acordos e sabia lidar com gestão de crises”, salienta o venezuelano, que vive no Chile há sete anos, trabalha como chefe de liderança estudantil em uma universidade particular, e vota no país desde 2023.
O ex-mandatário, que faleceu em 2024, foi um dos principais atores responsáveis pela reformulação da direita chilena, levando para os programas partidários posturas mais de centro.
Isso, inclusive, gerou uma contrarreação conservadora nas siglas, o que fomentou o surgimento de correntes extremistas.
É o que aponta o estudo “De lo Convencional al Extremo”, publicado em junho.
Coordenado pelo cientista político Cristóbal Rovira, a análise revela ainda que, apesar da direita moderada e da extrema direita compartilharem alguns princípios, elas se diferenciam muito na sua relação com o sistema democrático chileno.
O primeiro grupo é heterogêneo, tem diferentes opiniões, mas se converge no compromisso com a estabilidade econômica e o progresso.
É um setor que está mais disposto a buscar diálogo e consenso.
Já a extrema direita tem “coesão ideológica, marcada por um forte imediatismo religioso e uma visão conservadora profundamente arraigada.
Seu discurso enfatiza a família tradicional como pilar central da sociedade”, diz o estudo.
Além disso, o setor prioriza a segurança nacional, mesmo em detrimento de certas liberdades individuais, e considera a esquerda uma ameaça aos seus valores.
José Antonio Kast e Johannes Kaiser, do Partido Nacional Libertário, são os maiores representantes dessa direita atualmente.
Apoiador de Kaiser, Julio Morales, 43, milita no PNL desde dezembro de 2024.
O engenheiro mecânico se identifica com o candidato, que atualmente é deputado, porque ele é liberal na economia e também nos valores.
“Em contrapartida, Kast é liberal somente no campo econômico e conservador nos valores e discordo de muitas posturas dele nesse âmbito.
É importante ter liberdade para desenvolver projetos de vida de maneira independente, sem intervenção do Estado ou de terceiros que limitem a sua capacidade de pensar, fazer ou decidir o que você considera benéfico para a sua vida”, justifica.
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Para Claudia Heiss, tanto Kaiser como Kast são uma ameaça à democracia, apesar do republicano ter moderado o seu discurso nos últimos meses em busca de votos nas eleições presidenciais.
A politóloga lembra que Kast já defendeu a ditadura de Augusto Pinochet e demonstrou pouco compromisso com os direitos humanos.
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Kaiser, por sua vez, afirmou recentemente em uma entrevista que apoiaria um novo golpe de Estado caso o Chile vivesse situação semelhante à de 1973.
“As forças políticas têm que reafirmar o seu compromisso democrático, seu compromisso com o pluralismo, e ter pontes com todos os setores democratas da esquerda e da direita.
Assim, isolariam os grupos que ameaçam a democracia em nosso país”, ressalta Claudia.
Fonte: estadao
31/08/2025 18:42