Desnormalizar o álcool: como romper o folclore em torno de quem não bebe Novo movimento questiona a onipresença da bebida alcoólica na sociedade e o imperativo de tomá-la em inúmeras circunstâncias “Você ainda vai aprender a beber”, diziam a Pedro — como se fosse um marco do desenvolvimento humano, tipo perder o dente de leite, dirigir ou abrir conta no banco.
Ele aguardou.
Nada.
Pedro nunca teve muita afinidade com álcool.
Não foi por trauma, histórico de alcoolismo na família nem por princípios nobres.
Simplesmente nunca fez muito sentido para ele.
E olha que, como muita gente, viveu uma fase tímida, ansiosa, querendo se enturmar — ainda assim, nunca pensou que o álcool contribuiria para dar conta disso.
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Contudo, até hoje escuta:
— “Mas você nunca bebe?
Nem em festa?!”
— “Só um pouquinho, vai… Tá tão gostoso!”
— “Mas é vinho italiano, orgânico!
Cerveja premium!”
— “Ah, então você deve ser religioso…”
— “Tá de medicação?”
— “Gente, alguém dá uma água com gás pra ele” (seguido de um silêncio constrangido).
Existe um folclore em torno de quem não bebe — como se fosse necessário justificar uma ausência, ao passo que o consumo em si raramente é questionado.
Quem nunca ouviu um cochicho meio irônico: “não confio em quem não bebe”?
Sempre entre risos, o comentário insinua algo concreto: beber é visto como prova de sintonia, compadrio, pertencimento — e a abstenção, algo antissocial, puritano, até suspeito.
A verdade é que, apesar das bebidas alcoólicas serem de longe as substâncias psicotrópicas mais utilizadas, muita gente não bebe.
Muita mesmo.
Aproximadamente metade da população brasileira.
Tem quem nunca gostou, quem parou, quem simplesmente não sente falta.
E também aqueles que querem dormir melhor, ter mais energia, estar mais presentes nos relacionamentos, pensar com mais clareza, manter os ganhos da atividade física — e apostar numa vida longa, com saúde e autonomia.
Só que isso costuma deixar os outros desconfortáveis.
Um cartaz da campanha americana Sober Curious crava, com simplicidade provocadora: “Eu não estou bebendo.
E está tudo bem.” Esse movimento, que vem ganhando força sobretudo entre mulheres e jovens adultos, não tem cara de seita abstêmia, nem prega a salvação pela água com gás.
Ele propõe algo mais subversivo: questionar o hábito de beber antes de simplesmente repetir o gesto.
Será que eu gosto mesmo disso, ou só estou tentando evitar parecer esquisito?
Por que a cerveja e o vinho são obrigatórios, mas o suco de uva precisa de justificativa médica?
📊 Informação Complementar
Essa curiosidade pela sobriedade (ou, em bom português, essa vontade de entender o que nos empurra ao copo) questionamento com a normalização do álcool.
Mas cá entre nós: por que será que quem não bebe incomoda tanto?
Será medo de que essa gente lembre o que aconteceu no karaokê da firma?
Ao contrário do que se repete por aí, a maioria das pessoas não bebe com moderação.
Até porque “moderação” é aquele tipo de conceito elástico — cada um estica até onde quiser (inclusive depois do terceiro drinque).
Vago, auto atribuído e, não por acaso, o xodó da indústria do álcool.
A indústria adora quando tudo vira uma questão de “equilíbrio”: nada de exageros — mas parar de vez?
Aí já radical demais!
E ninguém gosta de radicalismos, não é?
Esse “equilíbrio personalizado” encaixa bem com quem bebe todo dia, mas jura que é só uma taça.
Quem só bebe no social — e esquece o fim da noite.
Quem nunca dirige bêbado, só “levemente alegre”.
Ou quem exagera “de vez em quando” (também conhecido como toda sexta, sábado e domingo de sol).
Tem os que fazem a compra da semana já com vinho na terça, cerveja na sexta e espumante “pro caso de visita”.
E os fãs do clássico “vinho faz bem pro coração” — mesmo que a ciência mais recente tenha dito que não é bem assim.
Esse é justamente o paradoxo da prevenção do álcool, bem documentado em pesquisas: a maior parte dos danos causados pela bebida não está concentrada apenas em quem tem dependência, mas sim no grande número de pessoas que se consideram usuárias “moderadas”.
É nesse uso ambíguo — que oscila entre o recreativo e o problemático — que vemos os maiores custos para a saúde pública, segurança, produtividade e bem-estar.
É por isso que a ideia de “moderar” como política pública, como no recente programa Modera da Prefeitura de São Paulo, soa tão deslocada.
Por que não Reavalie, Desnormalize?
O nome do programa já carrega uma premissa problemática: a de que beber é inevitável — e que basta ao indivíduo aprender a se autorregular.
O problema é que essa lógica transfere a responsabilidade para o cidadão, ignorando décadas de evidências que mostram que políticas eficazes de redução de danos precisam mudar a cultura, o ambiente, e não só o comportamento individual.
Talvez a gente precise parar de tratar quem não bebe como um mistério a ser resolvido.
Como se houvesse algum trauma escondido, uma convicção religiosa ou uma doença terminal.
Às vezes, a explicação é bem menos épica: a pessoa simplesmente não gosta.
Ou cansou do roteiro repetido — empolgação, falação, exposição, ressaca, culpa.
Desnormalizar o álcool não é virar fiscal de copo alheio, é só aceitar que dá pra viver sem — sem deixar de ser adulto, legal ou menos participante.
Afinal, se a festa depende do teor alcoólico pra funcionar, talvez o problema não seja quem está de água com gás na mão.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e doutora pela Unifesp.
É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros.
Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia.
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Fonte: veja
03/07/2025 07:12