O Céu da Língua, com Gregório Duvivier, que estreou no fim de 2024, em Lisboa, lota os teatros por onde passa e se consolida como uma peça-fenômeno
O Céu da Língua, com Gregório Duvivier, que estreou no fim de 2024, em Lisboa, lota os teatros por onde passa e se consolida como uma peça-fenômeno
No domingo 25, O Céu da Língua, protagonizada por Gregório Duvivier, chegou à marca de 22.824 espectadores no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo. Foram apenas quatro semanas em cartaz, mas um número impressionante de sessões: 28.
No penúltimo dia da temporada, o ator subiu ao palco às 16 horas, às 19 e às 21h30. “Teve uma hora em que minha sócia, que é também minha mulher, me disse: ‘Você vai matar o Gregório!’”, conta, rindo, Fernando Padilha, criador, com Clarissa Rockenbach, da Pad Rok, produtora do monólogo que, por onde passa, causa sensação.
🧠 Análise da Situação
No camarim onde Padilha recebeu CartaCapital, havia uma maca. Ela estava ali para que Gregório pudesse passar por algumas sessões de acupuntura – cuidado que, nas últimas semanas, se somou às sessões de fono providenciadas para cuidar de sua voz.
É de fato impressionante imaginá-lo repetindo três vezes em um dia a apresentação de cerca de 85 minutos em que encadeia frases, palavras e gestos cênicos. Gregório, tornado famoso com os vídeos do Porta dos Fundos, leva ao palco uma figura obcecada pela língua portuguesa – como ele próprio é.
O texto é brilhante e seu efeito cômico perdura por alguns dias. Depois de ouvi-lo dar as explicações mais estapafúrdias e também as mais sensatas para o sentido (ou a ausência dele) das palavras, é difícil não evocar, diante das banalidades do cotidiano, trechos da peça.
Seu personagem entra em cena declamando Camões, para falar da inutilidade da poesia, e faz uma ode ao trema, que foi, o pobre coitado, parar no lixo com a reforma ortográfica. Na sequência, desconcertado, ele constata que, ao nascermos, encontramos todas as coisas denominadas e que não podemos escapar da sina de aprendê-las. São as palavras, afinal de contas, que nos dão as chaves para o mundo.
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O Céu da Língua nasceu do desejo que Gregório e a atriz Luciana Paes tinham de criar um espetáculo sobre linguagem. Eles estavam começando a trabalhar nessa criação quando veio um convite para que o ator levasse um projeto para Lisboa, no contexto das comemorações em torno dos 500 anos de Camões, celebrados em 2024.
A partir do convite, a dupla dividiu-se: ele ficaria em cena e ela o ajudaria a dar forma teatral aos textos e ideias sobre os quais vinham trabalhando. “Era um pouco a amiga ajudando o amigo a terminar o trabalho de escola, sabe?”, brinca Luciana. “Depois de um mês, ele me disse: ‘Você está me dirigindo’.” E assim ela estreou na direção.
Embora a peça tenha certo tom de improviso, tudo ali é bastante planejado. Em cena, estão também o músico Pedro Aune, que o personagem diz ser búlgaro e não entender uma palavra do que é dito, e a designer Theodora Duvivier, que manipula um retroprojetor e que o personagem afirma ser de São Tomé das Letras.
Ator formado no Tablado, no Rio de Janeiro, e ex-aluno da faculdade de Letras da PUC–RJ, Gregório enlaça, em O Céu da Língua, o talento cênico à percepção aguçada da língua. O resultado é uma surpreendente mistura entre comédia e reflexão linguística e cultural.
Um dos pensamentos de Luciana, enquanto construía a dramaturgia, era o de que Gregório, artista multimídia, dono de uma vasta produção disponível no YouTube e autor de livros, surgisse, no palco, único.
“Uma pergunta que eu me fazia, durante o processo, era: o que podemos fazer para, no teatro, colher o tesouro do Greg?”, conta Luciana. “De repente, fomos vendo o Greg, como ator, potencializado como um touro na arena.”
📊 Informação Complementar
A temporada no Sérgio Cardoso, em São Paulo, chegou a ter três sessões em um único dia
O destino de peça-fenômeno desenhou-se na estreia no Teatro Aberto, em Lisboa, em novembro de 2024. “Estavam programadas 12 apresentações. Fizemos 19”, conta Padilha. “Tivemos ingressos esgotados para todas as sessões e, em várias delas, eram dez minutos de aplauso. O Gregório dizia: ‘O que eu faço?’ Ele ficava lá no palco, sem saber como agradecer.”
Em fevereiro, houve a estreia nacional no Teatro Carlos Gomes, no centro do Rio. Padilha chegou a temer pela escolha. Era Carnaval e, além da concorrência de público com os blocos, havia a dificuldade de acesso ao local. “Tive medo de não ter público”, diz, antes de emendar o plot twist que, a esta altura, virou lugar-comum. “Abrimos sessões extras.”
Nessa primeira temporada carioca, começou o burburinho, com comentários da classe artística, jurados de prêmios revendo a peça e pedidos para novas temporadas pululando. Em março, houve a reestreia no Teatro Riachuelo, de mil lugares. Dessa vez, Padilha desconfiou da sessão dos domingos, às 16 horas, por causa do hábito carioca da praia. Deu teatro.
Antes de desembarcar em São Paulo, O Céu da Língua passou por Porto Alegre e pelo Festival de Curitiba – no Teatro Guaíra – e foi ovacionada. Em junho, haverá apresentações no interior do Estado e uma nova viagem para Portugal. No segundo semestre, retornam ao Rio e passam por Recife, Fortaleza, Aracaju e Maceió.
Padilha conta que a produção foi levantada sem leis de incentivo e sem patrocínio, mas que, encerrada a primeira temporada no Carlos Gomes, já estava paga.
Embora Duvivier tenha dito que não queria usar leis de incentivo, o produtor convenceu-o, recentemente, a inscrever o trabalho no programa que permite a captação de recursos via Lei Rouanet para, assim, viabilizar turnês específicas. Ele cita como exemplo o Acre.
O preço das passagens aéreas para uma equipe de sete pessoas, somado à dificuldade de fechar permutas – com hotéis, por exemplo –, implicaria ingressos altos demais. “O patrocínio abre a possibilidade de uma turnê popular para outros lugares”, explica Padilha.
Da mesma forma que algumas palavras, como afta, parecem ter nascido da coisa em si, O Céu da Língua parece ter nascido para encantar multidões. •
Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Palavras a mancheia’
Ana Paula Sousa
Editora de Cultura da edição impressa de CartaCapital. Doutora em Sociologia pela Unicamp.
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Fonte: cartacapital.com.br
20/06/2025 15:21