Azul de metileno: a verdade sobre o corante que virou “elixir da mente”
Substância ganhou as redes sociais com a promessa de melhorar o foco e até proteger contra o Alzheimer.
Médico desmistifica a história Entre cápsulas coloridas no Instagram e vídeos no TikTok que prometem foco, longevidade e juventude cerebral, um nome antigo reapareceu com roupagem moderna: azul de metileno.
Vendido por influenciadores como a nova substância “biohacker”, capaz de turbinar o cérebro, melhorar a energia, fortalecer a imunidade e até prevenir Alzheimer, o corante azul voltou aos holofotes – mas desta vez, não pelos motivos certos.
O problema não está em sua existência, mas no abismo que separa os seus usos médicos reais da fantasia vendida como suplemento milagroso.
É hora de contar essa história com os pés no chão da ciência.
O azul de metileno foi sintetizado pela primeira vez em 1876 pelo químico Heinrich Caro, como um corante para tecidos.
Mas sua trajetória logo ganharia outro rumo.
💥 Impacto e Consequências
Por sua afinidade com estruturas celulares, passou a ser usado na microscopia e na bacteriologia, marcando tecidos e células com sua cor intensa.
E foi então que entrou em cena o cientista Paul Ehrlich – uma das figuras mais influentes da história da medicina – ao testar a substância como tratamento para a malária.
Contra todas as expectativas, funcionou.
O azul de metileno tornou-se o primeiro antimalárico sintético conhecido e abriu caminho para a era da quimioterapia.
Um corante têxtil que salvava vidas.
📊 Informação Complementar
Ciência pura.
Ao longo do século XX e XXI, a substância continuou sendo estudada e aplicada com indicações específicas.
Sua principal utilidade clínica atual é como antídoto em casos de metemoglobinemia, uma condição grave em que o sangue perde a capacidade de transportar oxigênio, mesmo quando os pulmões estão funcionando.
Em situações como intoxicação por nitrito, anilina ou certos medicamentos, a hemoglobina sofre uma alteração e não consegue mais fazer seu trabalho.
O azul de metileno, nesse contexto, atua como um revertente bioquímico e pode literalmente salvar uma vida.
Ele também tem uso hospitalar em certos tipos de intoxicação, e tem sido investigado como adjuvante em quadros de sepse refratária ou malária resistente.
Tudo isso, claro, em ambiente hospitalar, com dose controlada, supervisão médica e indicações precisas.
Mas nada disso é o que aparece nas redes sociais.
Nos últimos anos, o azul de metileno foi promovido por influenciadores digitais e autoproclamados especialistas em “otimização humana” como suplemento cerebral milagroso.
A promessa?
Melhorar o foco, aumentar o desempenho cognitivo, prevenir o envelhecimento do cérebro e potencializar o metabolismo.
A realidade?
Não há nenhuma evidência clínica robusta que sustente essas afirmações.
Alguns estudos in vitro ou em modelos animais mostraram efeitos promissores no metabolismo mitocondrial e no controle de radicais livres, mas esses achados não se traduziram em resultados clínicos relevantes em seres humanos.
Um exemplo emblemático é o caso do Alzheimer.
Durante anos, acreditou-se que o azul de metileno ou seus derivados poderiam interferir na agregação de proteínas tau, relacionadas à doença.
Mas o maior estudo clínico já realizado – publicado no Lancet em 2016, com 890 pacientes – demonstrou que o composto investigado (o LMTM, derivado do azul de metileno) não teve eficácia superior ao placebo.
A empolgação da comunidade científica se dissipou com os dados.
O que não se dissipou, porém, foi o entusiasmo dos vendedores de promessas.
Cápsulas azuis ganharam as redes, geralmente sem prescrição, orientação ou controle.
E é aí que mora o perigo.
O azul de metileno não é inofensivo.
Em pessoas que fazem uso de antidepressivos, como os inibidores seletivos da recaptação de serotonina, pode desencadear a síndrome serotoninérgica, uma condição grave e potencialmente fatal, com tremores, confusão, hipertermia e até convulsões.
Em indivíduos com deficiência de G6PD, uma condição genética, o uso da substância pode provocar anemia hemolítica grave, que é uma condição em que ocorre a destruição das células do sangue.
Mesmo em casos leves, efeitos como náuseas, diarreia, dor de cabeça, alteração na coloração da urina ou da pele e sensibilidade à luz são comuns.
Além dos riscos individuais, há o problema coletivo: vender ciência distorcida mina a confiança nas instituições, banaliza os cuidados médicos e transforma saúde em produto de marketing.
Na Europa, associações farmacêuticas já alertaram contra o uso indiscriminado do azul de metileno.
Ele não é aprovado como suplemento, não é medicamento para uso domiciliar e não deve ser vendido para qualquer finalidade sem supervisão adequada.
No Brasil, infelizmente, farmácias de manipulação têm oferecido o produto de forma facilitada, com base em prescrições frouxas ou feitas por “médicos de Instagram” – um fenômeno preocupante e, no mínimo, antiético.
Não se trata aqui de rejeitar a ciência de substâncias antigas, muito pelo contrário.
O azul de metileno é, sim, uma molécula fascinante, e pode ter aplicações futuras relevantes.
Mas transformar um fármaco com usos clínicos específicos em “pílula da mente” para consumo recreativo é não só irresponsável como perigoso.
Em tempos de hype, precisamos mais do que nunca de bom senso.
Antes de seguir o conselho de um influenciador digital, vale a pena perguntar: isso tem respaldo científico real ou é só mais uma embalagem bonita para uma ideia vazia?
O azul de metileno salvou vidas – e segue salvando, dentro dos hospitais.
Mas, usado fora do contexto médico, ele pode ser mais ilusão azul do que solução brilhante.
* Gustavo Lenci Marques é médico cardiologista, pós-doutor em Ciências da Saúde, professor de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e especialista da plataforma de Carreira Médica PUCPR
Fonte: veja
25/06/2025 10:43