As proposta de Ronald Coase para resolver conflitos Muitos problemas do mundo poderiam ser solucionados à luz dos princípios criados pelo pensador britânico, fundador da Análise Econômica do Direito Esta coluna é dedicada a Ronald Coase, fundador inconteste da Análise Econômica do Direito (AED).
O britânico Coase foi justamente reconhecido com o Prêmio Nobel de Economia (em 1991) e até hoje é reverenciado por todos os estudiosos de Direito e Economia no mundo inteiro.
Mas, ainda que sua reputação esteja garantida, seu pensamento infelizmente continua sendo largamente incompreendido.
Especialmente no que diz respeito ao chamado Teorema de Coase.
Esse teorema, aliás, não foi batizado por ele mesmo, mas por outro Nobel e colega de Universidade de Chicago, George Stigler.
E talvez tenha sido o primeiro “responsável” pelo desvio na trajetória interpretativa dessa teoria, que acabou gerando equívocos em gerações de estudiosos até hoje.
Talvez por esses equívocos em sua compreensão, supõe-se que o teorema seja mais limitado em sua capacidade de resolução de problemas do mundo real do que realmente é o caso.
🔍 Detalhes Importantes
Enfatizo sempre: o Teorema de Coase é poderosíssimo e extremamente útil em aplicações da vida econômica e jurídica cotidiana.
Mas é preciso compreendê-lo bem.
O artigo original que deu origem ao teorema é The Problem of Social Cost, de 1960.
Sua publicação marca o nascimento da Análise Econômica do Direto.
Nele, Coase analisa, de forma profundamente empírica e cuidadosa, dezenas de casos reais (23, se não contei errado) de conflitos de direitos de propriedade ocorridos nos Estados Unidos e na Inglaterra.
E propõe que esses conflitos sejam interpretados pela lógica da economia, isto é, pensando nos incentivos, nos custos envolvidos e nos ganhos sociais.
Seu argumento é o seguinte: se fosse possível que as partes resolvessem seus conflitos por meio da negociação direta, sem custos de transação — ou seja, sem burocracia, advogados caros, incertezas ou interferência estatal —, então a solução naturalmente alcançada seria sempre a mais eficiente do ponto de vista econômico.
O máximo de ganhos com o mínimo de perdas.
Essa é a primeira parte do Teorema de Coase, que é a mais conhecida: “Se os custos de transação são desprezíveis, a distribuição inicial dos direitos de propriedade não afeta a eficiência econômica, uma vez que as partes envolvidas podem negociar uma solução eficiente através de acordos voluntários.” O problema é que a maioria das pessoas para por aqui.
Como se Coase tivesse vivido num mundo encantado, sem fricções, sem custos, sem a realidade das dificuldades das negociações.
E aí, confesso: me dá uma certa aflição!
Costumo brincar que, dizer que Coase ignorou os custos de transação é como afirmar que Isaac Newton acreditava num mundo sem gravidade.
É um absurdo completo!
Coase foi justamente quem revelou ao mundo que os custos de transação existem — e que eles moldam profundamente o funcionamento dos mercados e das instituições jurídicas.
Ele é o “descobridor” desses custos.
Aliás, quem leu integralmente o artigo de 1960 sabe que 28 das 41 páginas do texto original são justamente dedicadas à análise da realidade com custos de transação.
Inclusive, a seção VI do artigo é intitulado explicitamente The Cost of Market Transactions Taken into Account (“Os custos das transações de mercado levados em consideração”).
Ou seja, ele não apenas considerou esses custos — ele mergulhou neles.
Por isso, repito que me surpreende ver uma quantidade enorme de “intérpretes” e “críticos” de Coase (muitos de excelente formação e currículo) acusá-lo de ingênuo por não ter levado em consideração os custos de transação nas negociações de conflitos do mundo real… Por outro lado, autores como Robert Cooter e Thomas Ulen, no livro Law and Economics – o mais famoso manual de Direito e Economia da atualidade -, fazem questão de apresentar uma segunda parte para o Teorema de Coase, que é: “Se os custos de transação são relevantes, a negociação cooperativa será impossibilitada e a alocação legal será determinante no resultado econômico final.” E é aqui que a contribuição de Coase para o Direito se torna revolucionária.
A partir desse entendimento, Cooter e Ulen formulam dois teoremas normativos que derivam diretamente da obra de Coase.
O primeiro é o Teorema Normativo de Coase: “Estruture a lei de modo a remover os impedimentos aos acordos privados.” Isso quer dizer que o papel da lei deveria ser facilitar a vida das pessoas para que elas possam negociar sozinhas, sem amarras ou entraves.
É o que justifica, por exemplo, o incentivo às mediações e conciliações judiciais ou extrajudiciais — algo que só mais recentemente começou a ganhar força no Brasil, em parte porque o Judiciário finalmente percebeu que não dá conta de resolver mais de 80 milhões de processos em curso.
E, sinceramente, duvido que essa mudança tenha vindo da compreensão do Teorema de Coase… Foi mais por exaustão mesmo.
O segundo é o Teorema Normativo de Hobbes: “Estruture a lei de modo a minimizar o prejuízo causado por fracassos em acordos privados.” Aqui, o recado é direto: quando não for possível negociar, o Estado precisa resolver os conflitos da forma mais próxima possível do que teria sido acordado entre as partes em um ambiente cooperativo, porque – como a primeira parte do teorema mostra – aquele resultado teria sido o eficiente, maximizador de ganhos.
É um convite à humildade dos juízes e legisladores, que em nosso país, gostam de fazer “criativas” interpretações e aplicações da lei.
Aliás, essa é a parte mais sensível para o Brasil de hoje.
Porque o que se vê com frequência é o completo oposto das lições de Coase.
Decisores públicos — legisladores, reguladores, magistrados — acham que sabem melhor do que as próprias partes o que é bom para elas.
Vestem uma grossa capa de arrogância, acreditando que suas “canetadas” substituem os acordos, os incentivos, os interesses legítimos e as complexidades do mundo real.
Porque se acham mais sábios, sabem melhor sobre tudo e todos.
E tomam decisões que, no futuro próximo, reverberam de modo bastante diferente de tudo o que foi prometido.
As nefastas consequências são inevitáveis.
Coase, com sua mente britânica precisa e ao mesmo tempo provocadora, escreveu tudo isso lá em 1960.
E é por isso que ele será lembrado para sempre.
Já os nossos legisladores… esses talvez não resistam ao próximo ciclo eleitoral ou ao fim de seus mandatos.
📊 Informação Complementar
Referências:
Coase, R.
H.
(1960).
The Problem of Social Cost.
Law and Economics, 3, 1-44.
Cooter, Robert & Ulen, Thomas.
(2010) Direito e Economia.
6ª edição, tradução brasileira, Porto Alegre: Pearson.
* Luciana Yeung é Professora Associada I e Coordenadora do Núcleo de Análise Econômica do Direito do Insper.
Membro-fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE).
Pesquisadora-visitante no Law and Economics Foundation na Universidade de St Gällen (Suíça) e no Institute of Law and Economics, da Universidade de Hamburgo (Alemanha).
Autora de “O Judiciário Brasileiro – uma análise empírica e econômica”, “Curso de Análise Econômica do Direito” (juntamente com Bradson Camelo) e “Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos” (coord.), além de dezenas de outras publicações, todos na área do Direito & Economia.
Fonte: veja
28/07/2025 17:19