Libertário em xeque: a Argentina de Milei; 1º episódio: Milagre econômico?
Como dois anos de ajuste fiscal de Javier Milei mudaram a economia argentina.
Crédito: Carolina Marins | TV Estadão ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES – O casal Ana Paula Grossi, 30, e Pedro Fonseca, 25, tenta enquadrar a Casa Rosada ao fundo de uma selfie para o registro de sua lua de mel.
Em um domingo frio, porém ensolarado, de 7 de setembro, centenas de turistas faziam o mesmo na capital da Argentina.
Mas em uma quantidade muito menor do que dois anos atrás, antes de Javier Milei se tornar presidente.
Até 2023, o português parecia uma segunda língua falada em Buenos Aires, Mendoza e Bariloche, de tantos brasileiros que aproveitavam o peso desvalorizado para fazer turismo.
Passados dois anos, o português cedeu mais espaço ao espanhol, inglês, francês e línguas eslavas.
A razão é a Argentina mais cara, ou “mais valiosa”, como define o governo.
A mineira Ana Paula já havia visitado Buenos Aires anos antes.
📊 Informação Complementar
Também conheceu no passado Foz do Iguaçu com a família, na tríplice fronteira, onde aproveitou para cruzar para o lado argentino e “fazer a festa” nas compras.
Voltando com seu agora marido, ela conta ter se assustado com a diferença de preços.
“Eu moro em Belo Horizonte e os preços estão muito parecidos com os da capital mineira”, conta.
Pedro observa que, como turista, ele já esperava desembolsar na casa das centenas de reais ao comer em restaurantes com estrela Michelin, ou qualquer outro local turístico.
Mas o que o assustou foram os preços no mercado.
“Fui comprar uma Coca-Cola e paguei quase R$ 20.
Está muito mais caro para quem mora aqui, nas coisas do dia a dia e de cuidados básicos”, diz.
Em um supermercado da Argentina hoje, uma Coca-Cola pode variar de 760 pesos (R$ 2,83) em uma lata de 220 ml para até 4.940 pesos (R$ 18,45) uma garrafa de 3 litros.
Conhecer a Argentina era um sonho antigo do atleta Márcio Batista de Oliveira, 56.
Ele já viajou o mundo em competições, tendo conhecido a Europa quase toda e até a China.
Mas a Argentina ainda não tinha tido a oportunidade, até que este ano conseguiu ir junto com a mulher Suzana dos Santos, 50, e a filha Laura Santos de Oliveira, 15.
Também era o sonho de Suzana, que já tinha ouvido falar que Buenos Aires lembrava as capitais europeias.
Mas logo no primeiro dia se decepcionou.
“Achei um absurdo pagar mais de R$ 300 em um prato de comida”, desabafa.
“Nós somos de Santos, uma cidade que também é turística, mas nunca paguei tanto assim”.
Passado o choque inicial, ela foi gostando da cidade, do clima ameno e da receptividade dos argentinos.
“Eu já estou até gostando mais do Brasil”, brinca Márcio ao concordar sobre os preços.
“Achei que esse presidente era tipo um Bolsonaro.
Mas, aparentemente, ele mentiu pros argentinos, porque a situação já passou de dois anos e não melhorou nada.
Na verdade, parece que está muito pior.
Estou decepcionado.”
O governo Milei se recusa a admitir que a queda acentuada no número de turistas chegando ao país seja um problema.
Prefere ver como uma mudança de tendência.
O setor turístico sim diz estar sofrendo com o novo cenário, mas acredita ser possível revertê-lo.
“Antes a Argentina era escolhida por ser um país barato, e hoje é um país valioso e isso muda muito o eixo”, diz Andrés Deya, presidente da Federação Argentina de Associações de Empresas de Viagens e Turismo.
“Acredito que estamos em um momento de começar de novo a recuperar todo esse turismo receptivo que vinha antes.
O bom é que recuperamos por serviços, por qualidade, pelos destinos de natureza que temos e não somente por ser um destino econômico e essa é a grande diferença”, continua.
A realidade é que antes a chegada de turistas era massiva, e aí não se media bem se nos escolhiam por preço, por qualidade, por destino ou por produto.
Agora sabemos que, sobretudo, desde o segundo semestre do ano passado e este primeiro semestre de 2025, nos escolhem porque querem vir à Argentina como diferencial em relação a outros países.
Andrés Deya, presidente da Federação Argentina de Associações de Empresas de Viagens e Turismo Mais europeus Deya, que também é presidente da Feira Internacional de Turismo, aponta que a queda nos números se deu principalmente no chamado “turismo de fim de semana”, impulsionado pelos moradores dos países limítrofes.
Brasileiros, chilenos, bolivianos e uruguaios que moram mais perto da fronteira costumavam ir à Argentina aproveitar um fim de semana barato.
Agora, vem aumentando o número de turistas dos Estados Unidos e da Europa que tendem a passar muito mais tempo no país, diz.
De fato o número de europeus chegando ao país foi um dos poucos que cresceu de agosto de 2024 para agosto de 2025 – último mês disponível.
Mais de 12% a mais de turistas da Europa chegaram ao país este ano.
Nas categorias do Indec, os turistas do chamado “restante do mundo” – que incluiria Ásia, África e Oceania – tiveram um aumento de 30%.
Em um dos vários bancos em frente à Casa Rosada, a polonesa Natalia lia um livro em meio aos turistas que tiravam foto na residência oficial do presidente.
Era sua primeira vez em Buenos Aires e vinha a trabalho, mas estava aproveitando aquele domingo de céu azul para conhecer a cidade.
O que a surpreendeu, diz, foi achar os preços muito comparáveis com os da Polônia.
Tem sido comum ultimamente encontrar falantes de polonês, ucraniano e russo visitando o país.
O outro lado da moeda é que, embora haja mais americanos e europeus indo à Argentina, também há muito mais argentinos saindo para visitar a Europa e os Estados Unidos.
Mais de 35% dos argentinos foram para a Europa de um ano para o outro e outros 11% foram para Estados Unidos e Canadá.
O grande campeão de recepção de argentinos é o Brasil, com aumento de mais de 100%.
Menos viagens internas
Com mais argentinos indo para fora, a consequência é menos argentinos viajando internamente.
Com o custo interno elevado, tem valido mais a pena utilizar dólares em outros países do que dentro da própria Argentina, explicam economistas.
Isso trouxe uma queda de 11,8% no número de turistas viajando internamente em 2024, segundo os últimos dados da secretaria de turismo.
Essa diminuição também significou 25,9% menos de gastos médio dos argentinos com viagens.
Na temporada de verão, 3,9% menos turistas viajaram internamente pelo país, preferindo ir ao Chile, Brasil e Uruguai, segundo a Confederação Argentina de Médias Empresas (Came).
Já no inverno, a queda foi de 10,9% comparado com o ano anterior.
Os que viajaram gastaram menos e passaram menos dias de férias.
Se a comparação for com 2023, o pico do turismo, a queda é de 21,5%.
“As férias de inverno foram afetadas pela queda do poder de compra das famílias, pela perda de competitividade cambial e por um clima mais frio e chuvoso do que o normal”, diz o relatório da Came de 3 de agosto.
Menos argentinos estão viajando dentro do país por ter menos renda.
Os que estão viajando são os de maior poder aquisitivo, e estão escolhendo ir para outros países.
Com isso, as ocupações hoteleiras ficaram quase 50% abaixo da média e os empregos na área foram fortemente impactados.
Junto com os argentinos que preferem o exterior, vão embora os dólares que o presidente Javier Milei tanto precisa para seguir com o seu programa econômico.
“Para Milei, os dólares, em princípio, não são um problema.
O que ele diz é: ‘Se eu organizar as contas públicas, isso vai fazer com que o risco-país diminua, vou ter acesso a financiamento e deixar que os argentinos façam o que quiserem com seus dólares porque eu vou ter essa capacidade de refinanciá-lo’.
Discursivamente ele te diz que não é um problema.
Agora, na realidade, isso sempre foi um problema na Argentina”, explica o economista Juan Manuel Telechea.
Todos os analistas de qualquer consultoria estão dizendo que não há dólares para pagar a dívida até janeiro do próximo ano e em grande medida por isso é que aumentou o risco-país e por isso é que subiu o dólar.
Nessa lógica a Argentina hoje tem um tipo de câmbio historicamente baixo, ou seja, para os argentinos hoje está muito barato viajar para o exterior, que impacta nos dólares.
Neste contexto de que a economia precisa dos dólares para poder pagar a dívida, claramente é um fator que joga contra o seu programa econômico.
Juan Manuel Telechea, economista e autor do livro ‘Inflação!
Por que a Argentina não consegue superar isso?’ Segundo Andrés Deya, o setor aposta que uma série de incentivos e promoções para baratear as viagens, e assim fazer os argentinos e os estrangeiros voltarem a passear pelo país.
Alguns pacotes de promoções de agências de viagens no mês de setembro, diz, já serviram para aumentar as compras para o próximo verão, sendo que mais de 60% dessas compras foram para viagens internas.
Já para atrair de volta o turista estrangeiro, a associação, com apoio do governo argentino, tem viajado a outros países para divulgar outras promoções.
Em julho, o secretário de Turismo Daniel Scioli esteve no Brasil para promover o programa “Visite a Argentina”.
O mesmo foi feito no Uruguai, no Chile, no Peru e na República Dominicana.
“Nós viemos de uma mudança de dois modelos de gestão econômica muito diferentes.
Então, a transição de uma gestão para outra foi brusca” justifica Andrés Deya.
“Acho que agora já estamos entendendo qual é o novo modelo, como se deve trabalhar nele, e nós temos alcançado muitas coisas através do diálogo, que eu acredito que é o importante.”
Fonte: estadao
25/10/2025 07:29











