A falta de políticas públicas de apoio a “famílias extensas” Mais de 7 milhões de crianças e adolescentes são criados por avós, outros parentes ou pessoas próximas – quase sem nenhum apoio do Estado Sempre me chamou a atenção a grande quantidade de crianças criadas pelos avós nas diversas reportagens que fiz pelo Brasil.
Quando perguntadas sobre a mãe e o pai, muitas não sabem sequer responder onde estão.
Lembro de muitas histórias e dramas que presenciei, como a de um garoto de 4 anos levado para um abrigo depois que a avó morreu.
Até pouco tempo, não havia dados sobre esse tipo de arranjo nas estatísticas nacionais.
Em junho deste ano, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou uma análise sobre famílias extensas e o cuidado de crianças e adolescentes.
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O estudo – que tem como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2023 e o Censo 2022, do IBGE – dá pela primeira vez a dimensão real dessa prática tão comum sobretudo nas camadas mais pobres.
Em 2023, existiam 7,3 milhões de crianças e adolescentes vivendo com avós, outros parentes ou pessoas próximas.
Número que corresponde a 13,9% da população total de zero a 17 anos no Brasil, mais do que a população total do Paraguai (6,9 milhões) e cerca de duas vezes a do Uruguai (3,3 milhões).
A maioria (81,9%) vivia com os avós e 13,6% com outros parentes.
Uma minoria era formada por bisnetos (3,4%) e agregados (1,2%), adultos responsáveis sem laços de parentesco formal.
As mulheres correspondem a 62,4% dos responsáveis por esses domicílios, indicando também nesses arranjos uma prevalência da responsabilidade feminina.
VÁCUO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS Em entrevista à coluna, a pesquisadora sênior do Ipea, Enid Rocha Andrade da Silva, responsável pelo levantamento, chamou a atenção para a importância de haver políticas públicas para apoiar essas famílias, como já acontece em países da Europa.
“Essa solidariedade está muita concentrada em famílias pobres, que vivem com renda per capita de até um salário mínimo”, destacou.
Segundo ela, isso reforça ainda mais a importância de apoio, inclusive financeiro, a esses arranjos.
A maioria (53,6%) das crianças e adolescentes vivendo com parentes ou pessoas próximas são pardas ou pretas e estão nas regiões Norte (21%) e Nordeste (17,1).
Em geral, seus contextos são marcados por desigualdades sociais e raciais, além da pobreza.
Uma sobreposição de vulnerabilidades que tem impacto nas mais diversas áreas, inclusive em suas trajetórias educacionais.
Dados do Ipea indicam, por exemplo, uma maior incidência de defasagem idade-série entre eles.
Até então ignorada, essa população – grande demais para não ser percebida – precisa ser olhada nas políticas públicas com urgência, alerta Enid Rocha Andrade.
Quando os pais não estão em condições plenas de realizar o cuidado de crianças e adolescentes, os parentes ou pessoas próximas devem ser a primeira alternativa considerada.
O acolhimento institucional, em abrigos, é entendido como uma medida excepcional, a ser tomada apenas em último caso.
Apesar da relevância desse tipo de arranjo, a maioria das cidades não tem programas para apoiar essas famílias.
“Alguns municípios têm saído na frente porque não se conformam em não dar subsídios para aquela avó ou madrinha que assume uma criança e não tem como arcar com os gastos”, conta a pesquisadora.
BOM EXEMPLO
Um desses municípios, segundo ela, é Franca, em São Paulo.
Em 2021, o município criou o Benefício Temporário de Transferência de Renda às Famílias de Origem (Lei Municipal nº 9.022/2021).
Trata-se de um benefício financeiro que busca prevenir a institucionalização e viabilizar a reintegração de crianças e adolescentes, oferecendo suporte para as famílias de origem, rede de apoio ou parentes próximos que assumam os cuidados.
Abrange também o jovem que completou a maioridade dentro dos serviços de acolhimento, sem perspectiva de reintegração familiar.
Atualmente, de acordo com a Secretaria de Ação Social da Prefeitura de Franca, 66 famílias são beneficiadas.
Além do benefício, Franca também tem o Programa de Proteção Social Assistida.
Criado em 2023, oferece acompanhamento às famílias com crianças e adolescentes em risco de afastamento do convívio familiar e ingresso em serviços de acolhimento.
📊 Informação Complementar
Entre as iniciativas, há o mapeamento da rede familiar e a articulação com a rede de suporte, prevenindo a separação familiar e garantindo a proteção social antes da necessidade de medidas extremas.
De acordo com a Secretaria de Ação Social, essas iniciativas resultaram na redução de 65% do número de famílias impactadas pela medida de afastamento do convívio familiar entre 2020 e 2024 e têm servido de inspiração para outros municípios efetivarem estratégias semelhantes.
Como tudo na área social, não há receitas prontas nem soluções simples.
O estudo publicado pelo Ipea mostra uma realidade que já sabíamos que existia, mas que até então não havia sido mapeada.
Espero que seja o ponto de partida para impulsionar mais programas no país que enfrentem esse desafio garantindo os direitos de crianças e adolescentes mais vulneráveis.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação.
Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor.
Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos.
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Fonte: veja
05/08/2025 13:57