Um dos maiores erros do século XX, além da criação da bomba atômica, foi vincular o tema da pobreza à economia, como se a tragédia fosse apenas problema de renda, e não questão de fundo moral e de gestão pública.
A escravidão só foi derrotada quando passou a provocar horror e indignação entre os não escravizados.
Por ser apenas falta de renda, a permanência da pobreza não causa indignação moral, apenas incômodo passageiro, o que faz aceitável a existência de pessoas famintas, crianças sem escolas de qualidade, famílias morando na rua ou em casas sem saneamento.
🌍 O Cenário Atual de veja
Perde-se naturalmente impulso político para a superação do que é visto como crise, e não como tragédia.
A abolição da escravidão só avançou quando houve comoção moral, como ocorreu na Inglaterra, graças sobretudo à luta de William Wilberforce.
Em Flores, Votos e Balas, Angela Alonso mostra que no Brasil isso aconteceu após 1880, quando foi travada uma luta moral que converteu a consciência escravocrata nacional em abolicionista.
💥 Impacto e Consequências
Mas não tivemos líderes que indignassem a sociedade diante da constância da pobreza.
É como se, na época da escravidão, os defensores da liberdade restringissem sua bandeira ao aumento da renda dos escravizados, para emancipar alguns, sem abolir de vez a escravatura; ou se Nelson Mandela se contentasse com programas de cotas e bolsas universitárias para fazer os negros sul-africanos serem aceitos como brancos, sem extirpar o apartheid.
“Não há impulso político para a superação de algo que é visto como crise, e não como tragédia” Hoje, é preciso transformar a convivência com a pobreza em uma nova consciência: a da segunda abolição — justamente a da pobreza.
🌍 Contexto e Relevância
Para tanto, devemos superar a visão economista, que é a da pobreza entendida como mera escassez de renda, e não como a privação do acesso à cesta de bens e serviços essenciais à vida.
Após décadas de crescimento econômico, a sociedade não sentiu indignação moral diante da continuidade do quadro de pobreza.
Tampouco compreendeu que sua superação não virá automaticamente com o crescimento do PIB e a expansão da renda social, como se isso garantisse a cada brasileiro pobre o acesso pleno àquilo que necessita — saúde, educação, segurança.
Se houvesse verdadeira indignação, e ela se traduzisse em mobilização política, a pobreza não resistiria a poucos anos de uma estratégia social focada em erradicá-la.
Para isso, é preciso transformar a tolerância em indignação e formar uma consciência pela segunda abolição — a da pobreza.
A simples distribuição da carga fiscal na arrecadação é necessária do ponto de vista moral, mas ela não erradicará a pobreza se os recursos arrecadados não forem usados para garantir a oferta pública dos bens e serviços cuja ausência define a pobreza.
Ela continuará existindo se os recursos da justiça tributária forem dragados por corrupção, mordomias, salários milionários ou investimentos que beneficiam apenas o “andar de cima”.
A justiça fiscal só será abolicionista se for utilizada para financiar o acesso de todos aos bens e serviços públicos essenciais, especialmente para implantar um sistema nacional público de educação com qualidade e equidade, capaz de elevar a produtividade da economia, aumentar a renda nacional, promover sua distribuição e induzir participação política na direção de romper o círculo vicioso que faz a permanência da pobreza.
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2025, edição nº 2954
Fonte: veja
27/07/2025 06:40